segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

Tudo o que é sólido dissolve-se no ar

My question is: as a dissociating psyche protects itself from painful experience by means of a traumatic distancing, might photographic representations induce a kind of protective, distancing latency for the group psyche of the viewing public? Photographic processes cannot cause new relationships to events, to the real, but they may well induce them. A digital latency might erase the last vestiges of a claim to authenticity, challenging both the directness of one’s relationship to photographic technology (…) as well as the presumed presence of the image maker in the historical moment. (…)
In The Society of the Spectacle, Debord argues that in modern society ‘‘All that once was directly lived has become mere representation’’, and that authentic experience has been replaced with spectacle and image commodity: ‘‘Images detached from every aspect of life merge into a common stream, and the former unity of life is lost forever. Apprehended in a partial way, reality unfolds in a new generality as a pseudo-world apart’’.
In Lieberman, Jessica Catherine(2008) 'TRAUMATIC IMAGES', Photographies, 1: 1, 87 — 102
© Hugh Welch Diamond, Dr., Melancholia passing into Mania, c.1950

© Hugh Welch Diamond, Dr., Seated woman with bird, c.1955
Laura Nadar

sábado, 2 de outubro de 2010

Baci.



E pudessem todos os beijos ser assim «klimtados».

Klimt, 1907;

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Revolution Action

O voto é uma arma, mas eu pessoalmente prefiro a Sig Sauer P229 de 9mm.

Orçamento 2011

A receita para combater a crise é acrescentar mais crise. Sempre me espantou a lógica distorcida do capitalismo: há pouco dinheiro, emprego, a economia abranda? Corte-se nos salários, aumentem-se os impostos, faça-se haver ainda menos dinheiro, emprego, que a economia se depaupere o pouco que ainda resta. Mais ainda me espanta que estas estranhas ideias façam tanto eco em tanta gente, e apareçam por aí como receitas únicas e inevitáveis.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Uma observação sobre a política

Por mais que identifiquemos "o problema" como o governo, a oposição, a política ou o raio que os parta, os verdadeiros problemas são sempre outros. Nenhum deles pode ou até deve ser resolvido tendo em conta essas categorias tão miseravelmente incompletas, e isto não quer dizer que esses problema não sejam importantes, simplesmente que se dá demasiada importância a eles. Paradoxalmente: o dia em que se começa a dar menos importância à política é o dia em que se começa a perceber o que é a política.
No primeiro fragmento, Heraclito, há 2.500 anos atrás, disse qualquer coisa deste género: os homens não percebem o Logos, tanto antes de eu lhes explicar o que é o Logos, e, mais curiosamente, também depois de eu lhes explicar o que é o Logos. Isto quer dizer, na minha insábia opinião, que não vale a pena tentar explicar nada aos homens, eles continuam sempre a achar que o que sabem é o que é. E não pensem que estou a distinguir certos homens uns dos outros. É igual para todos, com certeza também para mim.
O que é que isto tem a ver com a política - é que é precisamente a impossibilidade de explicar o Logos que impossibilita a política tal como tem sido entendida. Quero dizer: desde sempre, como tem sido entendida por Maquiavel, ou Hobbes, ou os iluministas, ou os founding fathers, ou toda essa gente que vem a seguir. Essa política é impossível, o que significa que é uma mentira, uma farsa. OK. A conclusão a tirar agora não custa nada. É que a política é o reino da opinião, e, como sabe toda a gente que me lê neste blog 2+2=5, a opinião é a soma do zero com o 0. O que quer dizer que as verdadeiras questões são outras, tanto na nossa vida como na nossa outra vida (aquela que se vive em sociedade), e que a farsa da política é apenas uma maneira, mais uma maneira, de nos esquecermos dessas questões, agora já não através de nos comermos uns aos outros, mas de nos aceitarmos uns aos outros, e o que é que é mais detestável, pernicioso, contra-producente?
Odeio as máscaras e as sombras que ocultam a realidade (a realidade, a propósito, é o nosso ponto de vista, e nada mais - Heidegger). Por acaso os meus pais são de esquerda e deixaram-me (felizmente) essa herança (a herança da direita é muito mais estúpida). Vou votar no Alegre porque o meu colega de blog André Carapinha, ontem, em conversa, e depois de bebermos um branco de Colares, me disse que isso é a atitude mais de esquerda a tomar. Eu confio nele, e ainda mais no branco de Colares.

sábado, 25 de setembro de 2010

E a propósito, bem vindos à terra dos festivais de Outono


Não acreditam? Confiram aqui. Depois dos festivais de verão, o Barreiro acolhe a Temporada de Outono, ou não fosse o tempo cinzento mais adequado ao registo pós-industrial da cidade. Até novembro, temos o Barreiro Outras Músicas, abaixo destacado e já em curso; de 5 a 16 de Outubro o OutFest, dedicado às músicas experimentais, com destaque para Panda Bear (dos Animal Collective) e para Alex von Schilppenbach, pianista que é figura cimeira do free jazz europeu. Em destaque neste festival o facto de os concertos decorrerem um pouco por toda a cidade, nos mais variados locais, e de o passe para o festival permitir utilizar os Transportes Colectivos do Barreiro. Finalmente a 12 e 13 de Novembro a 10ª edição do Barreiro Rocks, o maior festival de garage rock da península, com The Strange Boys e King Khan em destaque. Ainda por cima, não sei se sabem, o Barreiro é terra para se ficar a beber uns copos até bem tarde e tem Lisboa a 20 minutos de barco. Com um bocado de sorte podem ainda encontrar-me, que de vez em quando faço umas visitas à terrinha.

Logo à noite, no Barreiro


Ontem foi um grande concerto da Lula Pena, que não tive oportunidade de anunciar atempadamente. Hoje à noite, quem estiver pelo Barreiro ou se deslocar para a outra banda tem oportunidade de assistir a um concerto do melhor MC nacional, Halloween, e dos mestres do hip-hop nova-iorquino, Antipop Consortium. Amanhã a festa continua com Tigrala e Oval.


sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Homens...é.

Homens...só têm de ser homens. E desta vez na língua que sai da nossa língua.

Por Manu Chao;

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

Roma


Junho de 2010. Foto de Sérgio Santimano

Irá o FMI aterrar outra vez na Portela? (3)

Eu cá concordo com o André: também acho esquisito que esteja toda a gente muito quieta quanto a isto do FMI.
1983, Mário Soares - 2010, José Sócrates; o círculo completa-se. Eterno retorno. O PS e o FMI. Maravilha das maravilhas da esquerda moderna, que pelos vistos já era moderna nos saudosos 80s.
A minha opinião é que este país não tem solução alguma, daí que o FMI ou não FMI seja irrelevante. Mas tem muito mais piada quando é a esquerda moderna a chamar os coveiros do seu amado estado social. Bem podem berrar o Arnaut ou o Alegre - os filhos matam o pai. Viva o socialismo na gloriosa linhagem Soares - Sócrates!

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Irá o FMI aterrar outra vez na Portela? (2) - O cavalo de Tróia

Acho muito estranho o relativo silêncio da Esquerda sobre o rumor de nova intervenção do FMI em Portugal. Tirando, curiosamente, o Manuel Alegre, ainda não vi ninguém denunciar com a veemência que se exige uma possibilidade que significa a cedência total do que poderá restar de democracia económica neste país aos instrumentos do capital, sob os aplausos e o coro de aprovações dos "economistas", ou seja, daqueles cuja ocupação alterna entre, quando no governo, contribuir para este estado de coisas e ajudar os amigos com mais umas benesses, e, quando fora dele, clamar contra a incapacidade dos portugueses em resolver os seus problemas "estruturais", e continuar a ser muito bem pago por isso.
Acho, no entanto, que aqui a cantiga é outra. Com o pânico que se pretende lançar, justificar-se-á um novo ataque às conquistas sociais que ainda restam neste país. Há uns tempos falou-se de retirar o subsídio de natal aos funcionários públicos, alguém ainda se lembra? Para "evitar a intervenção do FMI", o nosso governo ex-socialista e os seus aliados de facto, o PSD, lançarão as mais terríveis medidas de austeridade, sempre com o bendito desígnio de "salvar as contas públicas", "equilibrar o défice", não tocar um milímetro nos privilégios, por exemplo, dos bancos e da sua escandalosa taxa de IRC, e deixar o ónus da crise para os pobres, como aliás já se vai vendo: desde o início do ano 52 mil portugueses perderam o subsídio de desemprego , uma medida que permitiu ao Estado poupar 205 milhões de Euros. Um simples aumento de 0,15% no IRC dos bancos permitiria arrecadar o dobro disso , mas esse é o tipo de soluções proibida neste país, e ausente do "debate" económico em curso. Veremos se a lenga-lenga da intervenção do FMI não funcionará como cavalo de Tróia para que os "sacrifícios" sejam patrioticamente aceites pelos de sempre, para que Portugal não tenha de passar pelo vexame de uma intervenção exterior. Que sejam pelo menos "os nossos" a pôr em prática o desastre do capitalismo.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A mentira

José Sócrates confunde optimismo com idealismo. A distância entre o que diz e a realidade merece atenção redobrada e vigilância permanente.

Na terça-feira, durante a abertura do ano lectivo num instituto politécnico, Sócrates saiu-se com esta :

"Nunca tívemos tantas pessoas .... tantos portugueses a estudar no ensino superior." (video aqui)

Red Reporter não gosta de ser enganado e foi ver se o Primeiro-Ministro falou verdade.

Espanto! O Pordata desmente o Primeiro-Ministro. Na realidade, desde 2003 que o Ensino Superior tem vindo a perder alunos.



domingo, 12 de setembro de 2010

Contabilidade dos mortos: um, um milhão

"Um morto é uma tragédia, um milhão uma estatística". Grande frase de Estaline, que se aplica como uma luva às consciências bem pensantes, de todos os tempos, lugares e ideologias. Este Estaline, sendo um criminoso e um facínora, tinha pelo menos a qualidade de ser directo. Se algum americano o dissesse hoje, isto que traduz tão bem o "duplo plano" moral em que vivem, não teria grande futuro na política. E no entanto é este o duplo plano: nós (a vida sagrada, salvar vidas de americanos) e eles (danos colaterais, estatística das guerras). Não é novidade, nem exclusivo deles, todos os impérios, estados, se calhar todos os homens pensam assim.
Na verdade só há duas categorias antropológicas para os mortos: um (os nossos) ou um milhão (os outros).

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Adeus professor, e que nunca venha para o Benfica



Vai-se o professor com dois anos de atraso, depois de conseguir destruir o trabalho de anos e baixar o nível de resultados da selecção nacional ao pré-96. O mais curioso é que, demitido assim, vítima anunciada de uma "conspiração" para o derrubar, a eterna fénix do futebol português mais uma vez vai conseguir sair por cima, culpando terceiros pelos seus constantes fracassos, seja a "porcaria", o "polvo", "presidentes incompetentes", "balneários de vedetas", ou, mais prosaicamente, "o azar". Dele é que a culpa nunca é, e assim ainda o veremos a dar cabo de mais um clube ou selecção neste futuro mais ou menos próximo. No Benfica é que não, vade retro!

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Kant - O que é o iluminismo (3 e final)


(...) Mas não deveria uma sociedade de clérigos, por exemplo, uma assembleia eclesiástica ou uma venerável classis (como a si mesma se denomina entre os Holandeses) estar autorizada sob juramento a comprometer-se entre si com um certo símbolo imutável para assim se instituir uma interminável supertutela sobre cada um dos seus membros e, por meio deles, sobre o povo, e deste modo a eternizar? Digo: isso é de todo impossível. Semelhante contrato, que decidiria excluir para sempre toda a ulterior ilustração do género humano, é absolutamente nulo e sem validade, mesmo que fosse confirmado pela autoridade suprema por parlamentos e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não se pode coligar e conjurar para colocar a seguinte num estado que se tornará impossível a ampliação dos seus conhecimentos (sobretudo os mais urgentes), a purificação dos erros e, em geral, o avanço progressivo na ilustração. Isso seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste justamente neste avanço. E os vindouros têm toda a legitimidade para recusar essas resoluções decretadas de um modo incompetente e criminoso. A pedra de toque de tudo o que se pode decretar como lei sobre um povo reside na pergunta: poderia um povo impor a si próprio essa lei? Seria decerto possível, na expectativa, por assim dizer, de uma lei melhor, por um determinado e curto prazo, para introduzir uma certa ordem. Ao mesmo tempo, facultar-se-ia a cada cidadão, em especial ao clérigo, na qualidade de erudito, fazer publicamente, isto é, por escritos, as suas observações sobre o que há de erróneo nas instituições anteriores; entretanto, a ordem introduzida continuaria em vigência até que o discernimento da natureza de tais coisas se tivesse de tal modo difundido e testado publicamente que os cidadãos, unindo as suas vozes (embora não todas), poderiam apresentar a sua proposta diante do trono a fim de protegerem as comunidades que, de acordo com o seu conceito do melhor discernimento, se teriam coadunado numa organização religiosa modificada, sem todavia impedir os que quisessem ater-se à antiga. Mas é de todo interdito coadunar-se numa constituição religiosa pertinaz, por ninguém posta publicamente em dúvida, mesmo só durante o tempo de vida de um homem e deste modo aniquilar, por assim dizer, um período de tempo no progresso da humanidade para o melhor e torná-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Um homem, para a sua pessoa, e mesmo então só por algum tempo, pode, no que lhe incumbe saber, adiar a ilustração; mas renunciar a ela, quer seja para si, quer ainda mais para a descendência, significa lesar e calcar aos pés o sagrado direito da humanidade. O que não é lícito a um povo decidir em relação a si mesmo menos o pode ainda um monarca decidir sobre o povo, pois a sua autoridade legislativa assenta precisamente no facto de na sua vontade unificar a vontade conjunta do povo. Quando ele vê que toda a melhoria verdadeira ou presumida coincide com a ordem civil, pode então permitir que em tudo o mais os seus súbditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação da sua alma. Não é isso que lhe importa, mas compete-lhe obstar a que alguém impeça à força outrem de trabalhar segundo toda a sua capacidade na determinação e fomento da mesma. Constitui até um dano para a sua majestade imiscuir-se em tais assuntos, ao honrar com a inspecção do seu governo os escritos em que  os seus súbditos procuram clarificar as suas ideias, quer quando ele faz isso a partir do seu discernimento superior, pelo que se sujeita à censura ‘Caesar non est supra grammaticos’ (1) quer também, e ainda mais, quando rebaixa o seu poder supremo a ponto de, no seu Estado, apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos contra os demais súbditos.
Se, pois, se fizer a pergunta – Vivemos nós agora numa época esclarecida? – a resposta é: não. Mas vivemos numa época do Iluminismo. Falta ainda muito para que os homens tomados em conjunto, da maneira como as coisas agora estão, se encontrem já numa situação ou nela se possam apenas vir a pôr de, em matéria de religião, se servirem bem e com segurança do seu próprio entendimento, sem a orientação de outrem. Temos apenas claros indícios de que se lhes abre agora o campo em que podem actuar livremente, e diminuem pouco a pouco os obstáculos à ilustração geral ou à saída dos homens da menoridade de que são culpados. Assim considerada, esta época é a época do Iluminismo, ou o século de Frederico.
Um príncipe que não acha indigno de si dizer que tem por dever nada prescrever aos homens em matéria de religião, mas deixar-lhes aí a plena liberdade, que, por conseguinte, recusa o arrogante nome de tolerância, é efectivamente esclarecido e merece ser encomiado pelo mundo grato e pela posteridade como aquele que, pela primeira vez, libertou o género humano da menoridade, pelo menos por parte do governo, e concedeu a cada qual a liberdade de se servir da própria razão em tudo o que é assunto da consciência. Sob o seu auspício, clérigos veneráveis podem, sem prejuízo do seu dever ministerial e na qualidade de eruditos, expor livre e publicamente ao mundo para que este examine os seus juízos e as suas ideias que, aqui ou além, se afastam do símbolo admitido; mas, mais permitido é ainda a quem não está limitado por nenhum dever de ofício. Este espírito de liberdade difunde-se também no exterior, mesmo onde entra em conflito com obstáculos externos de um governo que a si mesmo se compreende mal. Com efeito, perante tal governo brilha um exemplo de que, no seio da liberdade, não há o mínimo a recear pela ordem pública e pela unidade da comunidade. Os homens libertam-se pouco a pouco da brutalidade, quando de nenhum modo se procura, de propósito, conservá-los nela.
Apresentei o ponto central do Iluminismo, a saída do homem da sua menoridade culpada, sobretudo nas coisas de religião, porque em relação às artes e às ciências os nossos governantes não têm interesse algum em exercer a tutela sobre os seus súbditos; por outro lado, a tutela religiosa, além de ser mais prejudicial, é também a mais desonrosa de todas. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado, que favorece a primeira, vai ainda mais além e discerne que mesmo no tocante à sua legislação não há perigo em permitir aos seus súbditos fazer uso público da sua própria razão e expor publicamente ao mundo as suas ideias sobre a sua melhor formulação, inclusive por meio de uma ousada crítica da legislação que já existe; um exemplo brilhante que temos é que nenhum monarca superou aquele que admiramos.
Mas também só aquele que, já esclarecido, não receia as sombras e que, ao mesmo tempo, dispõe de um exército bem disciplinado e numeroso para garantir a ordem pública – pode dizer o que a um Estado livre não é permitido ousar: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes; mas obedecei! Revela-se aqui um estranho e não esperado curso das coisas humanas; como, aliás, quando ele se considera em conjunto, quase tudo nele é paradoxal. Um grau maior da liberdade civil afigura-se vantajosa para a liberdade do espírito do povo e, no entanto, estabelece-lhe limites intransponíveis; um grau menor cria-lhe, pelo contrário, o espaço para ela se alargar segundo toda a sua capacidade. Se a natureza, sob este duro invólucro, desenvolveu o germe de que delicadamente cuida, a saber, a tendência e a vocação para o pensamento livre, então ela actua também gradualmente sobre o modo do sentir do povo (pelo que este se tornará cada vez mais capaz de agir segundo a liberdade) e, por fim, até mesmo sobre os princípios do governo que acha salutar para si próprio tratar o homem, que agora é mais do que uma máquina, segundo a sua dignidade.

Königsberg na Prússia, 30 de Setembro de 1784.
Immanuel Kant

(1) - “César não está acima dos gramáticos.”

Doce Mar

Dançar no silêncio da noite. Musa obscura e secreta, que com o vagar das horas
solta a bonomia do olhar. Pulas e deitas-te na caruma dos corpos consagrados,
malha translúcida sob o luar inerme. O canto que ecoas pelo vale fala das eiras
e dos pássaros. No frémito da exaustão, corres louca pela sala de espelhos que
te mira pela primeira vez. No raiar dos salubres corpos, há árvores que vos
encontram e ambos bailam pela última vez uma mazurca bem aconchegada.

O vento do Sul trouxe chuva aos animais e aos pastos em derredor, lamacento
cheiro suave do teu rosto, carcomidas pedras no caminho dos deuses terrenos,
saias rodadas no acre do denso nevoeiro nas cabeças dos mortais. Por agora,
um trago suave de um beijo e um tilintar de copos na margem das dúvidas.
Socorro-me dos mapas e das páginas gastas dos jornais do passado. Neles,
guardo as castanhas assadas no lume dos afectos e ofereço-tas a ti, mar doce.

domingo, 5 de setembro de 2010

No Princípio Era o Som

A Música, ou aquilo de que é feita, o Som, é algo exterior ao Homem. Não é algo que saia de dentro dele, mas algo que entra dentro dele. No princípio não era o Verbo, era o Som. O Homem não teve que inventar o Som. Ele já existia milhares de anos antes de aparecer o Homem a querer ordená-lo. Existia nos relâmpagos a rasgar os céus, na água dos rios a correr, no vento a assobiar nas copas das árvores, na terra a ser sacudida pelas deslocações das placas tectónicas. A Música não deve a sua origem unicamente ao Homem. Deve-a também à Natureza, tal como o Homem lhe deve a sua. O Som é mais velho que o Homem, tão velho quanto o Universo, e nunca irá desaparecer. Ou pelo menos será a última coisa a desaparecer. A Música é a Arte Suprema. Todas as outras nobres artes são artes menores. O Homem mergulha nos livros e nos filmes, mas a Música mergulha dentro dele.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O ópio é que devia ser a religião do povo.

Os acontecimentos em Moçambique (2)

Ao contrário do que alguns previam, as manifestações e barricadas regressaram hoje a Maputo, e podem continuar nos próximos dias.
Aqui ficam mais alguns links, em actualização:

- A razão e o sentido dos motins - por Paulo Granjo no Público.
- No dia em que Hélio não voltou para casa - reportagem de João Vaz de Almada, também no Público.
- As guerras do pão - por ABM, no Ma-Schamba.
- Maputo, take 2 - Por Eduardo Pitta, no Da Literatura.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Os acontecimentos em Moçambique

Os afazeres diários só me permitiram chegar agora ao blogue. Isto num dia em que a contestação social rebentou em Maputo, devido ao aumento dos preços dos bens alimentares, em especial dos do pão. Vou colocar aqui os posts ou notícias que considero relevantes para o acompanhamento e compreensão da situação, e este post será actualizado sempre que necessário. Para já deixo hipotéticas opiniões para depois.

- Motins em Maputo e Maria Antonieta na Costa do Índico - por Paulo Granjo, no Antropocoiso, e também no Cinco Dias.
- Maputo Policiada Hoje - por Carlos Serra (em Maputo), no Diário de um Sociólogo.
- Um mapa dos acontecimentos registados, em actualização permanente e feito por "cidadãos-repórteres", no site moçambicano "Verdade".
- Notícia do Público -  por Sofia Lorena: dá conta de seis mortos confirmados (mas, tal como os outros jornais, pelo menos à hora em que escrevo, é fraco em pormenores).
- Moçambique e o Outro Lado da Mesma História - No A Minha Mosca (autor anónimo).
- Confrontos chegaram à Beira - notícia da TSF, que dá conta de quatro mortos na segunda maior cidade de Moçambique.
- Moçambique, a Voz da Fome - por Francisco Louçã no Facebook.
- Da Sociologia Apressada - por jpt, no Ma-Schamba.
- Também no Ma-Schamba, uma reportagem fotográfica sobre as manifestações.
A maior alegria de um esquizofrénico com ilusões paranóicas é descobrir que ELES andam mesmo atrás dele.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Jorge Palma - Portugal, Portugal

Fidel e os homossexuais


Através do Vias de Facto cheguei a esta notícia: Fidel Castro assume a sua responsabilidade na ignóbil perseguição que o regime cubano moveu, até muito dentro dos anos 80, aos homossexuais. Não lhe fica mal assumir os erros, embora seja muito difícil de acreditar que estes se devessem, como Fidel argumenta, a estar muito preocupado com outras coisas na altura. Na verdade, a perseguição aos homossexuais era regra na época, não tivesse Fidel, logo em 1959, declarado que os gays "não podem ser revolucionários"; ou, em 1971, decretado a homossexualidade como "patologia anti-social" (e não vale insinuar que se tratam de calúnias de "agentes da CIA", como é habitual quando se critica Cuba. Estas questões estão amplamente documentadas, constam até de resoluções do PC Cubano, e encontram-se facilmente em inúmeros sites ligados aos movimentos LGBT. Por exemplo aqui, mas há muitos outros. Pesquisem!). Também é curioso que seja agora assumida uma perseguição que negou em 1992, quando afirmou: "Nunca promovi políticas contra homossexuais"!


A tímida assunção de culpa de Fidel trouxe-me à memória a extraordinária autobiografia de Reinaldo Arenas, "Antes que Anoiteça"; um calhamaço de 500 páginas que li de seguida, em nove ou dez horas, sem intervalos para comer (acreditem se quiserem). Também deu um filme com Javier Bardem (em cima uma imagem do mesmo), que não vi. Imprescindível esta narração da extraordinária saga de Arenas, da sua desilusão com a revolução, das perseguições que a sua condição de homossexual lhe acarretou, e do modo sistemático como foram executadas, trágica mas com pormenores caricatos (por exemplo: tais foram as calúnias sobre Arenas, "agente da CIA", "terrorista", e etc., que quando é preso é respeitado na prisão como um indivíduo extraordinariamente perigoso - ele, um escritor - o que lhe vale uma estadia bem mais tranquila que à grande maioria dos homossexuais). Bem melhor estaria Fidel se assumisse por inteiro os preconceitos da cultura revolucionária dos "barbudos", machista até ao tutano, e o sofrimento que provocou, em vez de se limitar a pôr as culpas nos "outros", ou no "ambiente que se vivia". A culpa é de todos em geral, a culpa não é de ninguém em particular, já dizia o José Mário Branco.

Recomendo

Estive a ler este livro de Martha Nussbaum, "Not for Profit: Why Democracy Needs the Humanities". Recomendo vivamente e aproveito para indicar uma boa crítica ao mesmo na New Statesman: http://www.newstatesman.com/books/2010/06/value-democracy-nussbaum-arts
Apesar de alguma ingenuidade nas soluções (alguém acredita que se vá apostar nas humanidades assim sem mais nem menos, sem que se mudem algumas coisas importantes que estão por trás?), tem pelo menos o mérito de nos apontar uma pista para a origem da quantidade de imbecis que falam na televisão, ou escrevem nos jornais. Apenas, e, segundo a autora, por causa, da sua formação em economia ou gestão, e do seu desprezo para com as ciências sociais e humanas.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Nova aquisição

Em cima do fecho do mercado anunciamos a contratação do António Bizarro, grande criador de máximas, dardos e aforismos, e também de muitas outras coisas.

Sinais


Desenho de Maturino Galvão

Correio interno


André,

Aqui vão mais uns [desenhos]. Os políticos voltaram de férias mais parvos ainda, matéria para laracha não faltará.
Pensava eu, que o orçamento de 2011 não seria aprovado, mas as eleições presidenciais estragam este cenário. Cavaco já chiou para que não lhe estraguem o arranjinho de Belém. Quedas de Governo podem influenciar a sua reeleição logo à primeira. Por outro lado, PP Coelho, se for inteligente, espera que o PS reduza o défice, ou ver se o défice baixa; governar com um défice elevado é suicídio político, e lá se ia a bela aura de láparo sabedor e salvador. Assim, sempre manda umas bocas, achega-se como pessoa equilibrada, com soluções, não as põe em prática, e dá matéria intelectual para o povo falar nas tascas (ou no seu moderno equivalente: os blogs). Por que ele sabe perfeitamente o significado preciso de “reduzir despesa”: com certeza que não é despedir juízes, médicos, polícias etc., cantoneiros, jardineiros, contínuos etc., talvez; reduzir a despesa significa apenas baixar o valor das pensões. Tem sido tentado nas futuras, mas não chega, têm de baixar as actuais. Não sei se PP Coelho está numa dessas. Possivelmente não seria reeleito, ou talvez sim, o povo português também é parvo, como os seus políticos.  

Um abraço
Maturino Galvão
Cada vez que uma música dos Coldplay passa na rádio morre um gatinho.

Kant - O que é o iluminismo (2)


(...) Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais ainda, é quase inevitável, se para tal lhe for concedida a liberdade. Sempre haverá, de facto, alguns que pensam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande massa que, após terem arrojado de si o jugo da menoridade, espalharão à sua volta o espírito de uma estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem para pensar por si mesmo. Importante aqui é que o público, antes por eles sujeito a este jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus tutores, pessoalmente incapazes de qualquer ilustração, é a isso incitado. Semear preconceitos é muito danoso, porque acabam por se vingar dos que pessoalmente, ou os seus predecessores, foram os seus autores. Por conseguinte, um público só muito lentamente consegue chegar à ilustração. Por meio de uma revolução talvez se possa levar a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos preconceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento.
Mas, para esta ilustração, nada mais se exige do que a liberdade; e, claro está, a mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade, a saber, a de fazer um uso público da sua razão em todos os elementos. Agora, porém, de todos os lados ouço gritar: não raciocines! Diz o oficial: não raciocines, mas faz exercícios! Diz o funcionário de Finanças: não raciocines, paga! E o clérigo: não raciocines, acredita! (Apenas um único senhor no mundo diz: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei!) Por toda a parte se depara com a restrição da liberdade. Mas qual é a restrição que se opõe ao Iluminismo? Qual a restrição que o não impede, antes o fomenta? Respondo: o uso público da própria razão deve sempre ser livre e só ele pode, entre os homens, levar a cabo a ilustração; mas o uso privado da razão pode, muitas vezes, coarctar-se fortemente sem que, no entanto, se entrave assim notavelmente o progresso da ilustração. Por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela faz perante o grande público do mundo letrado. Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele confiado. Ora, em muitos assuntos que têm a ver com o interesse da comunidade, é necessário  um certo mecanismo em virtude do qual alguns membros da comunidade se comportarão de um modo puramente passivo com o propósito de, mediante uma unanimidade artificial, serem orientados pelo governo para fins públicos ou de, pelo menos, serem impedidos de destruir tais fins. Neste caso, não é decerto permitido raciocinar, mas tem de se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da máquina se considera também como elemento de uma comunidade total, e até da sociedade civil mundial, portanto, na qualidade de um erudito que se dirige por escrito a um público em entendimento genuíno, pode certamente raciocinar sem que assim sofram qualquer dano os negócios a que, em parte, como membro passivo, se encontra sujeito. Seria, pois, muito pernicioso se um oficial, a quem o seu superior ordenou algo, quisesse em serviço sofismar em voz alta acerca da inconveniência ou utilidade dessa ordem; tem de obedecer, mas não se lhe pode impedir de um modo justo, enquanto perito, fazer observações sobre os erros do serviço militar e expô-las ao seu público para que as julgue. O cidadão não pode recusar-se a pagar os impostos que lhe são exigidos; e uma censura impertinente de tais obrigações, se por ele devem ser cumpridas, pode mesmo punir-se como um escândalo (que poderia causar uma insubordinação geral). Mas, apesar disso, não age contra o dever de um cidadão se, como erudito, ele expuser as suas ideias contra a inconveniência ou também a injustiça de tais prescrições. Do mesmo modo, um clérigo está obrigado a ensinar os instruendos de catecismo e a sua comunidade em conformidade com o símbolo da Igreja, a cujo serviço se encontra, pois ele foi admitido com esta condição. Mas, como erudito, tem plena liberdade e até a missão de participar ao público todos os seus pensamentos cuidadosamente examinados e bem-intencionados sobre o que de erróneo há naquele símbolo, e as propostas para uma melhor regulamentação das matérias que respeitam à religião e à Igreja. Nada aqui existe que possa constituir um peso na consciência. Com efeito, o que ele ensina em virtude da sua função, como ministro da Igreja, expõe-no como algo em relação ao qual não tem o livre poder de ensinar segundo a sua opinião própria, mas está obrigado a expor segundo a prescrição e em nome de outrem. Dirá: a nossa Igreja ensina isto ou aquilo; são estes os argumentos comprovativos de que ela se serve. Em seguida, ele extrai toda a utilidade prática para a sua comunidade de preceitos que ele próprio não subscreveria com plena convicção, mas a cuja exposição se pode, no entanto, comprometer, porque não é de todo impossível que neles resida alguma verdade oculta. De qualquer modo, porém, não deve neles haver coisa alguma que se oponha à religião interior, pois se julgasse encontrar aí semelhante contradição, então não poderia em consciência desempenhar o seu ministério; teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor contratado faz da sua razão perante a sua comunidade é apenas um uso privado, porque ela, por maior que seja, é sempre apenas uma assembleia doméstica; e no tocante a tal uso, ele como sacerdote não é livre e também o não pode ser, porque exerce uma incumbência alheia. Em contrapartida, como erudito que, mediante escritos, fala a um público genuíno, a saber, ao mundo, por conseguinte, o clérigo, no uso público da sua razão, goza de uma liberdade ilimitada de se servir da própria razão e de falar em seu nome próprio. É, de facto, um absurdo, que leva à perpetuação dos absurdos, que os tutores do povo (em coisas espirituais) tenham de ser, por sua vez, menores (...). 

sábado, 28 de agosto de 2010

Música para a rentrée (1)



Vou deixar por aqui algumas propostas musicais, coisas bem actuais, para marcar a rentrée 2010, e a ver se se suporta melhor o terrível mês de Setembro que aí vem.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Kant - O que é o iluminismo (1)


Bem a propósito do post do Luiz Inácio mais abaixo, em que é citado este opúsculo fundamental do filósofo Immanuel Kant, resolvi publicar o dito por aqui. Devido à sua extensão, será dividido em partes. Este texto, um dos primeiros publicados por Kant, é, na minha modestíssima opinião, um dos seus mais brilhantes. Como foi realçado pelo Luiz nesse post, não chegou para ganhar o concurso, dizendo-nos algo sobre a justiça desse tipo de apreciações. Lembro-me de um professor meu da faculdade ter referido uma vez o nome do grande vencedor, mas a memória foi-se-me e não consegui descobrir pesquisando na net. Alguém sabe?

Resposta à pergunta: “O Que é o Iluminismo?”

IMMANUEL KANT


lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.

A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes), continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que em vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me

esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de terem, primeiro, embrutecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pacíficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo não é assim tão grande, pois acabariam por aprender muito bem a andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as tentativas ulteriores.

É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer semelhante tentativa. Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua. Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso, porque não está habituado ao movimento livre. São, pois, muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancar-se à menoridade e encetar então um andamento seguro(...).

Rentrée

A período de lassidão está a terminar. É altura para a rentrée no 2+2=5.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O fogo

Eu adoro este país. Agora toda a gente descobriu de repente, que quase todos os incêndios são criminosos. A sério? E os outros anos todos, os anos 80, 90, 2003, 2005, não se lembraram disso? Nessa altura, quem o dissesse em voz alta era, no mínimo, apelidado de teorizador das conspirações, e o que nos explicavam, pacientemente, era para não fazer fogueiras na floresta, ter cuidado a assar bifanas no campo, ou não mandar beatas pelo vidro dos carros (a sério que sempre adorei a das beatas), já que a culpa era nossa, dos incures portugas. Bom, agora que já se pode dizer em voz alta o que toda a gente sempre soube, e milhares de hectares ardidos depois, talvez fosse altura de reinvestir na guarda florestal, em vez de mais uma tonelada de soluções mágicas.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Panda Bear - Benfica


A partir do minuto 4:30. Mas a anterior, "Last Night at the Jetty", também é excelente. Há um video no youtube com o tema "Benfica" e imagens do glorioso nos anos 60, mas a qualidade do som é péssima. Para quem não sabe, o americano Panda Bear integra os Animal Collective, e, pela fortuna do amor, vive em Lisboa há já alguns anos. Parece que entretanto lhe foi crescendo também o amor ao Sport Lisboa e Benfica.

Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010)



"Em meados do século passado desembarquei em Lisboa com uma bicicleta e uma caixa de tintas a óleo na bagagem. Eram prendas preciosas, uma de aniversário e outra por ter feito o 2º ano do liceu, de que tinha conseguido não me separar quando por decisão familiar fui nessa altura remetido de Moçâmedes para fazer em Santarém, num prazo de 5 anos, o curso de regente agrícola. Mas nem da bicicleta nem das tintas a óleo nunca mais voltei a fazer uso. Passei esses 5 anos na condição de aluno interno, a residir no próprio estabelecimento escolar, e tanto as tintas a óleo, que eram o reconhecimento dos meus mais evidentes talentos de infância, como a bicicleta, que era uma adjectivação de gloriosas adolescências coloniais, foram sacrificadas à disciplina e ao programa da minha estadia em Portugal. Fiz o que tinha a fazer dentro do prazo previsto, fui sendo bom aluno e isso me foi assegurando o direito de vir a Angola com passagens por conta do estado durante quase todas as férias grandes. E em 1960, com 19 anos, voltei definitivamente à jóia da coroa do império português para começar a fazer pela vida, até hoje e a partir daí, conforme as circunstâncias e segundo os meus próprios critérios...
Não estou, porém, evidentemente, a contar a estória pelo princípio. Quando de facto fui embarcado em Moçâmedes com destino a Santarém, eu estava também a ser remetido ao exacto local do meu nascimento biológico e de onde, mais cedo portanto, tinha vindo com a família, que entretanto emigrava arruinada mas servida ainda de criada branca e acompanhada de cães de caça, desembarcar em Moçâmedes. De qualquer maneira o que me calhou na vida foi estar de volta a Angola com um curso médio já feito quando a maioria dos sujeitos angolanos da minha classe etária e com recursos para estudar, com alguns dos quais eu tinha feito o 2º ano do liceu, estava a ser, por sua vez, expedida para a metrópole para estudar em faculdades. Não beneficiei, assim, nem de uma iniciação universitária comum nem da escola de cativação ideológica que também foi para a minha geração a casa dos estudantes do império, por exemplo, e pelo menos duas consequências maiores para o meu percurso biográfico terão resultado desta configuração das coisas : a primeira é que o lugar onde vim ao mundo, na Europa, sempre constituiu para mim, desde que me lembro a enfrentar a vida e a reflectir nas coisas, uma referência de exílio; a segunda é que tudo quanto pela vida fora se me foi revelando em termos de relação com o tempo histórico que foi o meu, e determinando o meu lugar cívico no mundo, acabou de uma maneira geral por me ocorrer a maior parte das vezes de maneira directa, física e existencialmente interpelativa, e não raro brutal, para só vir a impor-se de forma ainda assim mentalmente muito elaborada e muito ruminada, nalguns casos, teoria ajudando, quase sempre só depois.
*
Lembro-me de ter nascido, ou então de ter mudado inteiramente tanto de alma como de pele, pelo menos uma meia dúzia de vezes ao longo da vida e nenhuma delas foi lá onde terei, pela primeira vez, dado conta da luz do mundo. De que havia uma matriz geográfica que essa é que me dizia de facto muito intimamente respeito pela via quem sabe de uma qualquer memória genética, dei conta aos doze anos - lembro-me sempre de cada vez que ainda por lá passo e se calhar é para isso que ando sempre a ver se passo por lá – a comer pão e com um ataque de soluços no meio do deserto de Moçâmedes, por alturas do Pico do Azevedo. E de que havia uma razão de Angola que colidia com a razão de Portugal, disso dei definitivamente conta já a trabalhar nas matas do Uíge quando, em março de 1961, eclodiu a sublevação nacionalista no norte de Angola. Sobrevivi então aí absolutamente à justa e a tempo de me refazer de tanta perplexidade e de tanto horror, tanto insurreicional como repressivo, quando a seguir, numa memorável noite em Luanda, houve quem me sussurrasse, em passeio pelas ruas da baixa, versos nacionalistas de Aires de Almeida Santos e de Viriato da Cruz que me revelaram uma alma de Angola que se me vinha oferecer sob medida e pela via do arrepio para eu ajustar à razão de Angola que a sublevação tinha acabado de me dar a reconhecer in vivo, e de que a partir daí passei a socorre-me para ver se conseguia conferir algum sentido à condição de orfão do império a que a vida, apercebi-me logo, me tinha destinado. Quando logo a seguir, também, a idade e o desamparo me colocaram com um papel na mão para apresentar-me no Huambo ao serviço da tropa colonial, e depois fui transferido para Luanda, já tinha conseguido que alguns mais-velhos da luta clandestina nacionalista me atribuíssem mínimas tarefas menores, como dactilografar, para posterior distribuição pelos musseques, poemas de revolta de autoria anónima e esclarecedora má qualidade. Mas depois foi uma data de gente presa e a tropa só não me entregou também à pide porque o comandante da secção de justiça do quartel a que eu pertencia era casado com uma filha de Moçâmedes e decidiu arriscar, e os informou que preso já eu estava, por razões disciplinares. Passei ainda uns tempos fardado de soldado português a fazer desenhos no quartel-general, mas depois fui requisitado, como técnico agrário, pelo instituto do café, e mandado para a Gabela e mais tarde para Calulo. Ligações políticas efectivas com a insurgência nacionalista, nunca mais encontrei maneira de as restabelecer... e também nada ajudava... nem a cor da pele que é a minha nem o cargo de engenheiro que ocupava... e o máximo que consegui foi ser dado como persona non grata pela administração do Libolo, junto com um padre basco e um médico português, e afastado compulsivamente dali. Pouco para currículo político.
Arranjei então outro emprego e mudei para a Catumbela, onde fui responsável pela pecuária de uma grande empresa açucareira. E foi nessa condição que levei tal volta passados três anos - de mim para mim e a sós ou quase e a arriscar os meus primeiros poemas afundado no interior do imenso platô de Benguela, extremo norte do deserto do Namibe, onde, em plena fúria, tinha posto cinco mil ovelhas a pastar e a parir e doze furos artesianos a puxar água do fundo do deserto - , levei então tamanha volta que andei os três anos seguintes a derivar pelo mundo. Estive em Hamburgo, em Copenhaga e em Bruxelas, sempre na pista da insurgência nacionalista, mas quando finalmente consegui chegar a Argel, para contactar com as forças da luta, ninguém ali me levou a sério ou então voluntaristas como eu já tinham lá que chegasse e até nem sabiam muito bem o que é que lhes haviam de fazer. Foi depois disso e de outros precalços que acabei mais tarde por ver-me a exercer funções de chefe de fabricação de cerveja em Lourenço Marques - Maputo - e estive a seguir em Londres, com um dinheiro que pedi emprestado, a fazer um curso de realização de cinema e de televisão. Na sequência dessa volta toda é que acabei por voltar a Angola em 1974 e por passar a noite de 10 para 11 de Novembro de 1975 no município do Prenda, em Luanda, a filmar às zero horas, que foi uma hora zero, a bandeira portuguesa a ser arreada e a de Angola a subir no mastro.
*
Se a razão para estar agora aqui a contar estas passagens da minha vida é ter escrito até hoje meia dúzia de livros, então já nessa altura, quando foi da independência, tinha o primeiro livro de poesia publicado. Era o resultado da volta que tinha levado na Talamanjamba, no interior do platô de Benguela. E tinha muita escrita alinhavada e era a altura e a idade de anotar quase tudo. Quase tudo poesia. E disso dirão os próprios livros. Quanto à vida cívica, de cidadão angolano comum, de opção e de condição, de 75 até 81 fiz pela a vida e pela revolução realizando filmes para a televisão angolana e para o instituto angolano de cinema. E guardo a satisfação muito particular de ter visto a bandeira de Angola hasteada em muito lugar distante e mítico do mundo, em Samarkanda, por exemplo, precisamente por eu estar lá com trabalho meu. Mas entretanto foi deixando de dar para continuar a querer fazer cinema, e escrevi então um texto académico anti-cinema-etnográfico para juntar a um dos filmes que tinha feito – Nelisita – e obtive com isso o diploma da escola de altos estudos em ciências sociais, de Paris, o que me deu imediato acesso à condição de doutorando. Foi então o meu tempo de investigações de terreno, nas praias piscatórias de Luanda, e da minha modesta participação na reformulação de toda a teoria das identidades colectivas, em Paris. Durante essa meia dúzia de anos vivi entre pescadores, nas praias da Samba Grande e do Mussulo, e doutores, na Sorbonne e no Boulevard Raspail. A partir de 87, já doutorado, passei a dar aulas de antropologia social para arquitectos, na universidade de Luanda, e a aproveitar sabáticas para ir dar aulas também, e consumir bibliotecas, em Paris outra vez, Bordéus, São Paulo, Coimbra... Em 89 andei ainda por Cabo Verde a tentar filmar de novo, mas isso é mais é para esquecer. Depois, a partir de 92, fui arranjando maneira de ir passar cinco meses, todos os anos, misturado com os pastores do Namibe de quem, desde menino, andava a querer saber como conseguiam organizar a sua sobrevivência e a sua existência, tão diferenciada de tudo quanto os pressionava à volta. Foi para dar notícia disso sem ter de escrever naquele tom da escrita académica – de teses e artigos fui achando que já tinha tido a minha dose - que adoptei então essa maneira de escrever que depois me pôs na pista de uma meia-ficção-erudito-poético-viajeira em que venho insistindo.


Hoje continuo a não conseguir andar por fora muito tempo sem devolver-me ao murmúrio de Luanda, à noite, que sobe das traseiras da minha casa na Maianga, onde a vizinhança me trata por brancurui, e sem continuar a meter-me sempre que posso por esses suis abaixo, a penetar desertos e a inventar pastores. Procurei sempre, sob qualquer situação ou regime, e fosse quem fosse que estivesse a mandar, viver a condição de cidadão comum. Lido mal com o privilégio, caiba ele a quem couber, até a mim mesmo, e nunca consegui deixar de sentir-me, tanto antes como depois da independência, tido como minoritário, quer dizer, subalterno ou intruso que incomoda sempre, desde que dê nas vistas. Acho que entretanto sosseguei bastante, na vida, quando, já faz algum tempo, dei conta que afinal não só jamais viria a ser o melhor do mundo, quanto mais cá na banda. E que também não tinha obrigação nenhuma de o ser. Mas uma das questões pessoais que se me anda agora, com a idade, a por com mais frequência, é a de saber se será possível continuar a envelhecer sem sucumbir de todo a uma senilidade insuportavelmente azeda ou sem incorrer também numa dessas beatitudes patetas e patéticas que pretendem fundamentar-se numa sabedoria qualquer que a idade acumulada por si só garantiria. É verdade que um percurso biográfico se faz de tempos, de lugares, modos, percepções, ocorrências, experiências, resultados, aquisições, perplexidades, digestões e ressacas. Mas também é verdade que eu não vou nunca deixar de permanecer muito irremediavelmente ingénuo, embora não de todo burro, e de lidar muito mal com toda a ordem de leviandade, de irresponsabilidade, de arbitrariedade, de mentira, de prepotência, chantagem, esperteza, insolência e soberba, e de achar que o que mais envenena as relações entre as pessoas, quaisquer relações, é o uso e o abuso da boa-fé dos outros. E é disso que o mundo está cheio e a bem dizer se faz. E há de fazer-se sempre, talvez, porque afinal, parece, é assim mesmo que ele é. Temo não chegar nunca a ser capaz, mesmo senil, de vir a conformar-me com isso. E o resto são umas ideias minhas que ando ainda cá com elas."

Biobliografia, retirada do Site da Cotovia.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Capitalismo de casta

Um país como Portugal, com a sua gritante falta de cultura cívica, pouca tradição democrática, escassa literacia, mais a desgraçada tradição católica do respeitinho pela autoridade, tornou-se rapidamente um terreno perfeito para o capitalismo de casta. Não que o capitalismo de casta seja uma coisa portuguesa; é o que se passa em todo o lado, e o correcto seria chamá-lo apenas de capitalismo. Uso a expressão para que se entenda "o estádio do capitalismo", à boa maneira marxista. Uma vez que as características deste "estádio" do capitalismo estão à vista de todos, não deveria ser necessário eu enumerá-las, mas suspeito que nem todos as vislumbram à frente dos seus olhos. Pelo que passo a referir: a distância absoluta entre os poderosos e os outros todos, o sentimento de inacessibilidade aos poderosos, a noção de intangibilidade dos poderosos, a casta superior em reprodução sobre si mesma, um sentimento de impotência dos outros todos relativo às "injustiças" com que a casta superior, de um modo cada vez mais explícito, age no sentido da sua perpetuação. Isto passa-se em todo o lado em que o capitalismo de casta se exprime de um modo veemente (praticamente em todo o lado), mas em Portugal, devido ao que acima foi exposto, a coisa passa-se, não de maneira essencialmente diferente, mas com algum despudor adicional. E pode passar-se assim, também, já que este país olha sempre para os outros como uma espécie de graal adormecido, onde a nossa miserável exigência pode encontrar uma resposta fácil, uma solução - esta é a desvantagem dos povos empobrecidos e sem cultura cívica dentro do capitalismo de casta.
Um dos momentos onde se nota como Portugal é óptimo terreno para o capitalismo de casta é a indignação selectiva, que sempre vem ao de cima, sobre os privilégios de determinadas pessoas, e acima de todos dos políticos. Acha-se que os privilégios atribuídos são resultados de acções individuais, são prémios, recompensas que o sistema oferece, mas com isso não se vê que os verdadeiros privilégios estão sempre, sempre, a escapar-se-nos dos olhos, e mais: que é o sistema que nos está sempre a escapar-se-nos dos olhos! Porque a verdadeira imoralidade não é aquela que aparece, de vez em quando, como "escândalo", e especialmente no caso dos políticos, que são figuras menores do capitalismo de casta: o que é imoral é a maneira como tudo funciona, é a máquina dos privilégios, que há muito deixou de ter a ver com o mérito, a livre iniciativa, e outras estórias de encantar, e funciona hoje apenas para a perpetuação da casta. A nossa "indignação" quanto aos privilégios dos políticos funciona como mais um fenómeno de encobrimento, e que não deixa de ser alimentado pela casta superior.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

A Escola Móvel

O Ministério da Educação decidiu fechar a Escola Móvel, criada para filhos de profissionais itinerantes, como feirantes e artistas de circo. O desvario "pedagógico" em Portugal chega a este ponto, o de acabar com as poucas coisas boas que se fizeram. A razão, já se sabe, é que custa muito dinheiro. Desta vez não se pode justificar os encerramentos e agrupamentos para poupar, com ridículos motivos "pedagógicos"; neste caso, não dava mesmo para justificar.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Justiça divina no Andanças

Um tipo não pode estar sossegado em São Pedro do Sul, no festival Andanças, a galar freaks, emebebedá-las, drogá-las, dançar o raio das danças e levá-las a cambalear para dentro da tenda, que tem de vir um mega-incêndio acabar com aquilo tudo? Oh justiça divina, foi a primeira vez que fui, e levei comigo o fogo, e mais de uma maneira de foguear.
Quanto ao resto, confirma-se o que me tinham dito: é o melhor festival em termos de gajas que me foi dado ver. Recomendo, mas sem incêndios.

Uma frase de verão


Uma das mentiras mais repetidas: "é a última e a seguir vamos embora"

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A preguiça, a cobardia e a classificação no concurso

"A preguiça e a cobardia são as causas por que os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio, continuem, no entanto, de boa vontade menores durante toda a vida; e também por que a outros se torna tão fácil assumirem-se como seus tutores"

Isto escreveu Kant na famosa resposta à pergunta "O Que é o Iluminismo?", publicada em 1784 em resposta a um repto de um jornal qualquer.
 O grande filósofo ficou, como se sabe, em 2º lugar no concurso, atrás de um iluminado que se perdeu na memória dos tempos.

FMM 2010 - N'Diale

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Um plano, desta vez, menos inclinado

Que o debate político ao nível dos media em Portugal está inquinado e inclinado, não é novidade. Raramente é quebrado o ciclo dos profetas da desgraça mais ou menos neoliberais, com a sua receita única, fechar, cortar, desinvestir, despedir. Enquanto qualquer imbecil com um MBA ou professor de Economia da linha dominante é convidado ad nauseam para repetir as patranhas do costume, as excelentes vozes do lado oposto são quase sempre silenciadas, de um modo tal que parece não existirem.
Num dos programas mais inclinados deste panorama, precisamente o Plano Inclinado da SIC Notícias de 31 de Julho, e numa raríssima abertura ao pluralismo político, Carvalho da Silva deu um baile ao pessimista de serviço, Medina Carreira, e ao neoliberal de serviço, João Duque. O programa está no youtube, por inteiro e em seis partes, e, garanto-vos, vale a pena ver. Deixo aqui os links.