Tenho um colega de trabalho que pertence ao tipo de gente a que só se pode chamar "classe média"; vive como a classe média e pensa como a classe média. As suas opiniões e hábitos são muito interessantes para se perceber como pensa a classe média. Aqui vão alguns exemplos: como não reconhece o outro e vive no medo permanente típico da classe média, é a favor da pena de morte. Utiliza aquele argumento "e se matassem a tua mãe?". Quando lhe replico "e se fosse a tua mãe a assassina" diz que "isso é impossível". Claro. Como o seu sonho é ser rico e detesta admitir que é pobre, é contra todo o tipo de greves ("trabalhem para subir na vida") e lambe as botas dos patrões enquanto é explorado e abusado, muito mais do que eu (os patrões não são parvos). Vive pelo e para o hedonismo, mas frustrado, porque não pode ter o que quer: vai arriscar parvamente a vida para corridas na ponte Vasco da Gama com o seu Clio alterado, mas é comido pelos que tem BMWs e afins; passa as noites agarrado ao PC e a jogos on-line, mas como não tem o dinheiro suficiente para comprar motherboards, CPUs e etc. e pagar ligações com velocidade em condições, perde. Quando sai à noite vai para os sitios fashion tentar engatar gajas, mas poucas vezes consegue, por duas razões: só quer aquelas que são demasiado boas para ele (como classe média sonha exibir uma dessas bombas), e quando consegue alguma facilmente perde a paciência, porque ela também é da classe média e ele não tem tempo para essa gente: ele é um homem em ascenção. Muito interessante é a sua opinião sobre as relações sociais em geral, e a pobreza em particular: acha que ninguém quer trabalhar e que deviam ser todos obrigados a fazê-lo, mas o seu sonho é ficar rico e não ter de trabalhar. E muitas outras coisas interessantes eu aprendo com o meu amigo da classe média sobre o que é a classe média.
Pois é. O pior é que como este meu colega são a maior parte dos meus colegas. Ou não fosse eu da classe média.
15 comentários:
Parece-me impossível qualquer conversa que assenta em referenciais bidimensionais , esquerda/direita, classe baixa/classe alta, crentes/ateus, e todo o mais. E volta e meia, lá aparece alguém que vive realmente nas 4 dimensões e não se consegue enquadrar. Eu sou um deles.
Não há dúvida que aqui está um bom retrato, não da classe média, mas da classe parva do nosso país. Se houvesse indicador global para isso, rapidamente Portugal marcaria pela positiva, não pela sua exclusividade, mas pela eterna figura de mediocridade que os portugueses se atribuem a si próprios. 1/5 da população no limiar da pobreza, 4/5 no limiar da estupidez. Não sei o que é mais grave. O que é certo é que nunca foi o bom senso do povo por si só o bastante para construir um país, mais o bom senso das elites, mas isso é outra estória.
Não sou a favor nem contra a pena de morte, não sou a favor nem contra as greves, não sou a favor nem contra qualquer ideologia ou crença ou atitude ou sistema ou ..., porque a certo ponto, qualquer acontecimento parece justificar aquilo que eu acharia noutro tempo ou lugar inconcebível. E vice-versa. Sou a favor do bom senso. E que a verdade fundamental deste texto é que precisamos urgentemente, e todos nós, de vitaminas para o bom senso. Mas transversalmente. Ele é porque nas elites internacionais se inventam e “socialmente comunicam” estórias, aparentemente irrefutáveis, que nos amedrontam e nos apontam para soluções já cozinhadas, que aceitaremos de bom grado embora ontem nos parecesse a coisa mais descabida, ele é porque nas elites nacionais andam (boa parte, não todos, sei lá) muito mais preocupados em intrigas palacianas do que propriamente deitar mãos à boa merda de obra que este país (sempre foi, já la vao 1000, 1000 meus senhores, anos) acordou para ver, à custa de avisos externos (é uma merda mas não temos outro remédio, os gajos deram-nos dinheiro, agora só temos é que comer e calar), ele é a elite da autarquia a mamar dinheiro dos empreiteiros para benefício próprio, ele é a elite do condomínio, o tipo fashion e todo bom, o intelectualzeco, o vanguarda da música, o grunho do clio kitado, ... , a viver encerrado na realidadezinha neurótica afunilada rejeitando todos os outros (com um defice de tolerância brutal!!!), ele é a elite do bairro social ou da lata, dá cá a massa, a virar a pirâmide. Ainda assim há gente que se afasta das elites? Somo-la todos nós. Com as suas características muito próprias. E às tantas seremos sempre a classe média para alguém, ou a alta, ou a baixa ou a parva, são fodidos os relativismos mas seremos sempre qualquer coisa que não nos parece a nós próprios ser, mas que merda, seremos aquilo que mais detestamos aos olhos de um qualquer outro.
Os meus colegas (alguns) são gajos que falam da bola desgastantemente, bebem e charram-se desmesuradamente quando o convívio se quer social, e depois vão para casa às 5 da manhã quando a noite morreu dão mais um, para ir arranhar o chão do quarto. Fora isso até são tipos porreiros. Há outros que não. Os que não são da nossa bela cidade. O melhor do ... são os ...!
Há um filme em que um gajos adormece e quando acorda, acorda sempre no mesmo dia. O sítio onde vivo dá-me a mesma sensação.
Ajuda, procura-se, urgente.
BA
Gostei do comentário do Anonymous, da ideia do SER MULTIDIMENSIONAL.
O desfiar do novelo, na linha da maiêutica socrática, é ainda uma grande escola!
Olá, BA, presumo que sejas o BA que estou a pensar. Gostei de partes do teu comentário, de outras não, e digo-te porquê: já desde o bom velho Aristóteles que sabemos que o homem individual não é a forma (Homem) mas os acidentes (gordo ou magro, alto ou baixo, etc.). Ou seja, aquilo que é a identidade de um homem constroi-se na diferenciação, oposição e mesmo rejeição. Não do outro, mas do geral, ou de certos aspectos do geral. Daí que me dizeres que és de esquerda e de direita, ou a favor e contra a pena de morte, dependendo das circunstancias, é igual a dizeres que és uma massa amorfa, ou seja, um nada (não leves isto pessoalmente, estamos a discutir ideias). Da mesma forma essa estória do bom senso não me diz nada. O que é isso? Mudou ou não ao longo da evolução do Homem? E não há muitos bons sensos? Qual é então o verdadeiro? Ou falamos de princípios, bases sólidas onde fundamos uma posição, ou navegamos ao sabor do vento de bom senso em bom senso. Abraço
pois com certeza que devo ser o BA que estás a pensar e claro que não me ofendo com uma bela discussão. concordo em ser uma massa amorfa, sem dúvida. concordo no "o que é isso do bom senso" (não citado, implícito), concordo na multiplicidade de bom sensos, concordo que mudou ao longo dos tempos e que não se funda numa época, antes num contexto pontual. não tomo posições fixas, embora seja esse o paradigma dos ideólogos, também eu o sou, mas não radical. agrada-me discutir posições, com o vento de feição, muitas vezes contra, se me agrada a nortada ou não, muitas vezes agrada-me a praia, outras a monção. confesso que me é difícil, muitas vezes, ouvir-me a mim próprio dentro da minha propria cabeça, afinal de contas sou o único gajo que tenho mesmo e semrpe de aturar. mas quando rejeito bidimensionalismos, preferindo a eles os multidimensionalismos, refiro ainda assim um esforço de posicionamento, que embora não goste de assumir, não posso deixar de achar interessante que se discutam os referenciais. o certo é que me permito a todo um tipo de escolhas, sempre de certos limites, claro, mas nunca bidimensionais, o que à partida me faz parecer reducionista fixar a multidimensionalidade de um ideal (porque se há coisa que vive fora do tempo e do espaço, para além de nós, é o pensar, e como tal é limitante que se o estreite numa linha) a dois pontos antagonicos. já não és, digo-to eu, o primeiro a apontar-me a minha suposta indiferença, ou vira-casaquismo, mas sei que nao sou, talvez pareça, pela inevitavel incoerencia das palavras ou das discussões, por adorar uma conversa tornado a uma aragem morta. sou um incoerente obstinado. obstinado, portanto, à contradição latente a que o contexto nos obriga e os contextos são complexos, não estivessemos nós, como refere o nosso amigo Morin, na era da hipercomplexidade (não estamos em era nenhuma, mas lá conseguimos agora começar a abrir os olhos para o caos). evidente é que nao sou um literato ou um douto filósofo, agradam-me apenas as conversas de café (desde que não da bola ou das vidinhas), as conversas de blog, para que me façam ir um pouco mais alem dos circulos que por vezes desenhamos e nos quais nos encerramos. e para tal, há que haver uma base logica, concordo tambem. mas que a base logica nao deve permanecer ao nivel das nossas analises, nas nossas conversas, enfim, das nossas mais abstractas teorizaçoes. há um fundamento empirico forte para sentir a questao, qualquer ela que seja, com a distancia e a proximidade suficientes, para que nos aperçaibamos que entre a pratica e o conceito, o haver e o dever, vao distancias que nao sao linhas, nao sao espaços, nao havendo melhor expressão, são hiperespaços amorfos que se manifestam porque... apenas se manifestam. baseados em escolhas, mais ou menos pensadas, mais ou menos sensatas, nem por nada rígidas e orientadas por qualquer teorema. direccionadas pelo que somos (geneticamente) e pela envolvencia (ambientalmente, mas no sentido lato, nao de verde e mar). fossemos nos exactamente este mesmo corpo num ambiente completamente diferente, nao seriamos este, certamente. do mesmo modo, se recuar no tempo 2 minutos, nao serei o mesmo (bastaria apagar este texto e escreve-lo de novo, nao sairia o mesmo texto). existe, sem duvida, uma tenue linha que nos orienta, mas que de modo nenhum posso acreditar nela como rigida. e por aqui fico... por enquanto. abraço.
BA
um tipo por vezes deixa-se levar pela emoção.
errata: onde quer que eu tenha falado em bidimensionalismos leia-se unidimensionalismos (já estava a querer dar vantagem aos defensores do modelo esquerda direita, mas é óbvio que esquerda direita assenta numa linha, que é unidimensional, não bidimensional).
aplique-se por exemplo à politica. os modelos mais avançados para descrever quadrantes políticos são bidimensionais, mesmo assim limitativos, como qualquer modelo o é. mas mais completos.
veja-se o compasso político.
http://www.culturalcreatives.org/Library/docs/NewPoliticalCompassV73.pdf
(a ideia não é ler o documento, tem 78 páginas!!!, é ver os bonecos. já dá uma imagem de como as coisas começam a complicar cada vez que subimos uma dimensão. em vez de esquerda direita, temos um quadrante.)
o propósito é apenas sugerir a aplicação da subida dimensional (de modelos uni, para bi, tri, multi) aplicados não só à política. ao que se quiser. os da ciencia pura já o fazem, os das ciencias humanas tambem, está na altura de nós (o povo) começarmos a interiorizar que isto não é só preto e branco, bonito e feio, bom e mau... há fugas, há caminhos que se perdem se olharmos para um plano, caminhos que lá estão escondidos se ignorarmos a 3ª dimensão. não proponho ir muito mais além, porque a nossa condição (humana) não nos permite. mas que ao menos as 3-D consigamos abarcar.
BA
não saiu bem
http://www.culturalcreatives.org/
Library/docs/NewPoliticalCompassV73
.pdf
Olá BA, também tenho sempre muito prazer em debater contigo. Eu não me considero nada dogmático, muito menos monodimensional. Agora, sou, por exemplo de Esquerda. É que para aplicarmos esses conceitos como "multidimensionalidade" temos de fixar planos para o discurso; ou então, somos mesmo só uma coisa (por exmplo só "multidimensionais") o que seria o contrário d que defendes.
Concordo: o mundo é complexo, como dizes, hipercomplexo, e alguns dos maiores erros (políticos, filosóficos, científicos) com consequências terríveis, foram dados pela pressa, pela urgência de simplificar. É muito difícil aceitar a complexidade, ou melhor, aceitar que não se pode compreender tudo, e que essa é parte intrínseca (se queres que te diga: a mais bela) da nossa condição. Certamente que se somos o que somos isso deve-se ao acaso (lá está: aos "acidentes" de Aristóteles) de termos nascido assim ou assado, aqui ou acolá. Mas, como te disse, sou de Esquerda. Dentro da minha complexidade, debruçado para o meu abismo, descobrí-me assim. Acho que, do mesmo modo perniciosa que a simplificação, é a teorização ao limite, torna-se sempre teorização ao absurdo. É que se pensarmos tudo, todas as variantes, hipóteses, a hipótese de estarmos enganados, as hipóteses das hipóteses, sabes onde chegamos? A lado nenhum. Daí ser necessário por vezes efectuar um "corte" no plano ("corte epistemológico", disse um que já não me lembra), de modo a fixar uma posição. A própria ciência não é, por definição, neutra, não há nada nuetro que seja algo, só o nada é neutro por essência, tudo o resto tem, de todos os modos que o penses, uma força, uma energia, uma direcção, um movimento. E, de uma forma mais prática, não se pense nunca que é a mesma coisa ser de esquerda ou de direita (ou mesmo do centro). É uma posição, e das mais fundamentais de assumir. Deixa-me que te diga que para mim estas questões resolvem-se, mais que teoricamente, ao nível estético, no sentido em que estética significa "adesão a algo". Abraço
O BA, anonymus, said: "Não sou a favor nem contra a pena de morte". Esse é um referencial. De direita! Aconselho "O Enforcamento", filme do Oshima. Classe parva? Talvez uma mudança de domicílio ajude!
uma resposta breve, mais tarde desenvolvo (especialmente a parte do andré, que está notoriamente a puxar para o campo filosófico e ainda bem)
armando: o não sou a favor nem contra a pena de morte seria mais no sentido de hiperbolizar a adequação de uma posição a um contexto. Não faz sentido que um país que tenha os meios para não a aplicar não a aplique. Mas países há em que a reintegração social é completamente impossível. Se fosse toda a vida educado num outro meio em que a luta pela sobrivencia fosse uma constante, não sei se assumiria esta mesma posição (de não ser a favor da pena de morte quando a reintegração social é possivel). Também não sou a favor do cativeiro, mas de momento é o melhor meio de que dispomos. Assim como em alguns países, a pena de morte´o é. Sublinhe-se que não quero iniciar uma discussão sobre os EUA, não concordo com a cretinice judicial daquele país, ponto. Fica a referência para o filme, ainda não vi, obrigado. Quanto a classe parva, sim, mudança de ares resolveria o problema. Ou me saem hoje os 96 milhões, ou então ficarei por mais uns tempos onde estou, para mal dos meus pecados. aceito donativos : ) Não é um sítio que deteste, mas de visita já me bastava. é quase um quarto de século, não sou talhado para raízes tão fundas.
andré: és de esquerda. muito bem. concretizemos.
suponhamos um eixo cultural: à esquerda os liberais, à esquerda os conservadores. onde te posicionas.
um outro eixo económico, que cruza com o cultural: de um lado o comunismo puro, do outro o capitalismo acérrimo. onde te posicionas.
um outro eixo, que cruza com os outros dois, que reflecte o nível de poder estatal sobre os cidadãos: numa ponta um estado autoritarista na outra um estato passivo. onde?
é possível percorrer os eixos e achar posições intermédias neste referencial tridimensional. em vez de uma linha para caracterizar o animal político, temos um cubo. agradam-me mais estes referênciais, era só aí que queria chegar. mas ficaram outras questões para te responder, daqui a bocado já cá venho.
abraços.
BA
oh oh oh. eu não tinha ido tão longe andré. o propósito não foi esse concerteza, quero eu acreditar. nem tão pouco, como digo, ligo a posicionamentos direita-esquerda. é como quiserem entender, eu argumento, mas não me perturbo.
mais abraços
até já
BA
PS: ouve lá andré, 10 da manhã e a "postar". isto ainda é de madrugada pá. a esta hora só o pessoal assalariado e zombie de mais para começar a trabalhar é que escreve por aqui umas coisas.
Tens razão, BA, acho que percebi mal o comentário do Armando devido a esta hora imprópria para se estar acordado. O meu cérebro só começa a trabalhar muito mais tarde. Daí que, usando as minhas prerrogativas de Soba de Blogue fiz o que só eu posso fazer e apaguei o meu comentário. Está lançado o mistério: o que estaria escrito? Só o eu e o BA podemos responder...
(como vês isto é muito cedo para eu utilizar mais que a 2ª camada do meu cérebro. A discussão segue dentro de momentos, a horas mais próprias).
a manhã faz destas coisas...
errata:
"Não faz sentido que um país que tenha os meios para não a aplicar não a aplique."
leia-se
"Não faz sentido que um país que tenha os meios para não a aplicar a aplique." (obviamente!!!)
agora responda-se:
andré. dizes:
"É que para aplicarmos esses conceitos como "multidimensionalidade" temos de fixar planos para o discurso; ou então, somos mesmo só uma coisa (por exmplo só "multidimensionais") o que seria o contrário d que defendes."
Não é o contrário do que defendo, se assim o entendeste, retrocedamos.
Proponho apenas um alargamento da visão, seja ela política, estética, whatever. Pensa bem: se te propusesse um esquema monodimensional para música. Gostas de clássica ou de moderna? Respondias? Acho que não. Assim como quando me perguntam (eu acredito que seja mais uma provocação do que uma pergunta), és de esquerda ou de direita? Não respondo!!! Porque se disser que sou de direita, não posso ser de esquerda, vice-versa. Isto se basearmos a discussão a um exio monodimensional. Há muito mais em questão do que isso, há os conservadores, os neo-conservadores, os ultra-conservadores, os fascistas, os comunistas, os liberais, os ultra-liberais, os libertários, os socialistas, os de 3ª via, os radicais centristas, os anarquistas, os anarquistas cristãos (eheheh, adoro esta!), ...
continuava aqui a citar exemplos até mais nao! cada um destes situa-se não à esquerda ou à direita, porque entre diferentes posições pontos em comum se tocam à direita e à esquerda. Fala-se portanto em quadrantes. Um modelo político não tem por objectivo fixar todos os pontos de vista em que um indivíduo se baseia. Tem sim por finalidade a clarificação do espectro de opções, para que a interpretação política funcione mais coerentemente, ou melhor, menos incoerentemente. Nunca senti a necessidade ou o estímulo de me posicionar em qualquer ponto deste espectro. É questionável, eu sei, mas nunca senti. Não quer dizer que nao tenha tendencias, mas não quer dizer tambem que elas são imutáveis. Mal de mim, que não gostava à cerveja há uns bons anos, que faria eu agora sem uma loirinha. Gosto da mudança de opiniões. Esforço-me por mudar as minhas. Sinto por vezes que elas mudam antes de eu sentir a necessidade que mudem. Por vezes o contrário. Tento apenas, racionalmente, fundamentar os vectores dessas mudanças. O que não quer de modo algum dizer que o consiga fazer.
"Dentro da minha complexidade, debruçado para o meu abismo, descobrí-me assim. Acho que, do mesmo modo perniciosa que a simplificação, é a teorização ao limite, torna-se sempre teorização ao absurdo. "
Eu também adoro Camus.
"Daí ser necessário por vezes efectuar um "corte" no plano ("corte epistemológico", disse um que já não me lembra), de modo a fixar uma posição."
Claro que sim. Mas não necessariamente vinculativo e, repito, monodimensional. Não concordo em fixar uma posição. A nossa própria natureza empurra-nos para a adaptação, nunca para a fixação. Livrem-me de, daqui a 20 anos, ter as mesmas ideias que tenho hoje e ideais cheios de pó. Há um ponto de partida óbvio, espero construir um edifício, mas se um dia tiver de o desmoronar e construir outro... Gosto de deixar essa hipótese em aberto. Baseado apenas numa única coisa. Bom-senso. E isso para mim é o seguinte: ser fiel ao meu princípio base: tentar ser tão verdadeiro e justo com os outros como sou para mim próprio, sentindo a convexão das esferas da liberdade individual de cada um, sem que nunca me deixe reprimir, nunca reprimindo ninguém (o que entendo por repressão seria depois outra longa estória).
"A própria ciência não é, por definição, neutra, não há nada nuetro que seja algo, só o nada é neutro por essência, tudo o resto tem, de todos os modos que o penses, uma força, uma energia, uma direcção, um movimento."
A ciência não se faz apenas de método. Os grandes avanços foram feitos de acaso e de cortes com o estabelecido.
"E, de uma forma mais prática, não se pense nunca que é a mesma coisa ser de esquerda ou de direita (ou mesmo do centro). É uma posição, e das mais fundamentais de assumir."
Claro que sim. Repito apenas que é uma reflexão demasiado complexa e importante para ser vista por caminhos estreitos. Há que ter noção de volume, não de equilibrismo sobre um eixo.
"Deixa-me que te diga que para mim estas questões resolvem-se, mais que teoricamente, ao nível estético, no sentido em que estética significa "adesão a algo"."
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É perigoso este raciocínio... quase como dizer que obrigatoriamente temos que aderir a algo antes de compreendermos o porque da adesão. Por essas e por outras este país anda como anda. Pelo sentido estético, pela apetencia pelas cores rosa e laranja, mais do que por um entendimento dos principios básicos de cidadania. Não sou um neutro. Apenas espero ter maturidade suficiente quando me vinculo a uma escolha: seja para a defender, seja para assumir com dignidade o meu erro e saber caminhar noutra direcção.
Abração
BA
Alô, BA, não tenho muito tempo, vou ter de ser breve.
Essa questão dos eixos referências não é nova para mim. É evidente que em certos aspectos (por exemplo, morais) posso estar muito mais perto de um liberal que de um comunista da velha escola. A política (porque é disso que estamos a falar) faz-se justamente de alianças pontuais com base em interesses mútuos. Eu por mais que abomine o Pacheco Pereira sei que ele é meu aliado na legalização do aborto.
Concordo quando dizes que um modelo político não tem por função (não deve, acrescento), fixar todos os pontos de vista. Essa é uma das inovações da contemporaneidade, dado que até não há muito tempo não era assim: a posição era estática, e não dinâmica, e a adesão a determinado modelo produzia uma inscrição radical de valores, por vezes dramática, como nos casos estalinista e nazi. Hoje em dia, ultrpassámos essa fase (mas é preciso haver as fases para as ultrapassarmos). Neste aspecto, parece-me, somos da mesma opinião, não somos dogmáticos, somos abertos e gostamos de nos considerar multidimensionais.
Onde divergimos é no papel que atribuimos à actualidade de sentido da dicotomia esquerda/direita. A minha opinião a este respeito é que essa oposição também é dinâmica; as questões hoje não se apresentam da mesma forma, com a mesma força, importância e consequências. Agora reafirmo-te: ela existe, e continuará a existir, e os seus princípios mantêm-se surpreendentemente (ou não) os mesmos desde que foi formulada. A saber: para a esquerda, a sociedade deve ser vista como um todo e caminhar para o bem comum; para a direita só conta o indivíduo e a sua realização. Analisando todas as nunaces, mesmo aquelas brutais que referí à pouco, encontras sempre este referencial, por mais pervertido (mas não subvertido) que esteja. Hoje em dia, curiosamente (ou não), os pensadores mais activos e inovadores são mesmo os de direita, e a melhor forma de compreender esta oposição será lê-los. Recomendo-te a leitura do blog Blasfémias (linkado neste blog). Por acaso, por causa desta discussão fiquei sem tempo para comentar o artigo lá citado do Luciano Amaral no DN, que terá de ficar para amanhã. A propósito: se me disseres que és simultaneamente a favor do bem comum e da realização individual, obviamente que se trata de uma questão de graduação da coisa (à medida daqueles testes que dão origem aos referencias multidimensionais que falaste). Mas se disseres que és 100% a favor das duas coisas, meu, isso também já tem nome: anarquismo.
Como vês, quando faço um corte na multidimensionalidade dinâmica no sentido de fixar uma posição, não pretendo que este seja definitivo; é só um corte, e vale o que vale, é uma posição momentânea no espaço e no tempo. Não tenho tempo para mais, essa do Camus foi bem jogada. Quanto à questão da estética como adesão, bem, isso precisava de muita conversa que fica para depois. Abraço
A propósito do exemplo da música (que é um bom exemplo): como deves saber eu gosto de muitos tipos de música. Mas tenho noção que aquilo que me fez musicalmente é o rock. O que é que isto significa? Que enquanto na clássica, jazz, brasileira, etc. sou exigente, só gosto do que é bom, no rock basta-me uma bateria a abrir e estou logo a abanar o capacete. Re-abraço
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