segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Sobre a exposição do João de Azevedo (1)


Fotos de Ivone Ralha



João Croco

Esta  manhã encontrei umas cartas, religiosamente bem guardadas, do meu amigo João de Azevedo. Tinham sido enviadas de Roma, onde vivia nos anos 70. E, ao lê-las, senti-me, se não culpado, pelo menos irritado comigo mesmo. É que, no alegre caos em que nos deixávamos perder, não fui capaz de ver o seu desejo mais pungente. E, no entanto, quantas vezes nestas cartas não era exactamente essa a questão! Pintar, desenhar, era o que o fazia feliz. Mas nunca afirma poder dedicar-se exclusivamente a isso. Os ideais políticos da nossa juventude não o permitiam. No entanto o caminho estava aberto: galeristas e coleccionadores interessavam-se pelo seu trabalho, interesse que o João só tinha então em conta do ponto de vista da subsistência.

Exaspera-me tentar hoje conquistar tudo o que foi então adiado. Na verdade o conflito começa na adolescência. João quer entrar na faculdade de Belas-Artes de Lisboa contra a vontade do pai que prefere vê-lo a estudar engenharia naval. Não seguirá nenhum dos caminhos. Depois de um ano na Faculdade de Direito, foge aos dezoito anos da ditadura salazarista, pedindo asilo político na Bélgica onde começa uma nova história. A sua existência torna-se rica, generosa e inventiva. E chega agora a hora de, sem reservas, desfrutar dos pincéis desfrutando do seu talento em plenitude.

Foi ele mesmo quem compreendeu que essa hora chegara, e fico contente por isso. A reviravolta deu-se em Timor, onde passou dois anos de 2005 a 2007. Nesta ilha de forma estranhamente parecida com a de um crocodilo, apaixonou-se pelas lendas locais e pela relação intensa que os Timorenses mantêm com a figura do crocodilo. Resultou daí uma série de pinturas de cores explosivas onde o homem e o sáurio se cruzam como se fossem um centauro invertido.

Assim como em Picasso com o encontro do homem com o touro – pensando em particular nos quadros que dizem respeito ao Minotauro – o encontro do homem com o crocodilo de João de Azevedo tem uma natureza fortemente erótica. Inquietante, também: haverá figura mais evocativa da castração que o crocodilo? Perguntem ao capitão Hook que pensa ele disto.
Mas para os falantes a castração está no coração da economia do desejo. No seu seminário “A relação do objecto”, Jacques Lacan evoca o crocodilo para ilustrar a alegria maternal devoradora, e do falo faz um bastão que se posiciona entre os dois maxilares não deixando que se fechem. Não sei o que os timorenses pensariam desta analogia!

Em Moçambique onde o João trabalhou onze anos, um pintor conhecido tem o nome de Malangatana Ngwenya, que significa Malangatana Crocodilo. Em Timor, ele torna-se João Crocodilo!

Yves Depelsenaire, psicanalista da  École de la Cause Freudienne (ECF), crítico de arte e autor de “Le Musée Imaginaire Lacanien”, (Lettre Volée, Bruxelas, 2009)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Head in a cage

Brain like an orchestra

«"I would like to turn my attention now to the well-adapted, who are classified as "not ill," those who compete successfully, who dominate, possess, and conquer - in other words, those who appear to be free of anxiety, stress, and suffering. The attempt to divide people into categories of ill and not ill is doomed to failure because it does not take into account the real illness that being a victim produces. If this crucial aspect of our development is ignored, then our understanding of history must remain incomplete. Our desire to understand human history will be frustrated as long as we are not capable of recognizing the ubiquity of the stranger within, an inability that comes about because we are forced to deny the terror and pain we were once exposed to. This prevents us from recognizing our victimization and its source, with the result that obedience is perpetuated because it provides a false sense of security. If we disobey, then we are overwhelmed by feelings of guilt. ".»
A. Gruen, in 'The Need to Punish: The Political Consequences of Identifying with the Aggressor
in The Journal of Psychohistory, Vol 27, No.2, Fall 1999.
©André Masson, Surrealist mannequin 'Head in a Cage' (1938)
Laura Nadar

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

ZECA MEDEIROS - Fados, Fantasmas e Folias

Zeca Medeiros, o Cantautor magistral, poeta, crooner, actor, realizador Açoriano está de volta com este duplo álbum. Imprescindível. Eu, que já o ouvi, aconselho vivamente. E na próxima sexta, dia 11 de Fevereiro, 22 horas, actua no Teatro Cinearte- A Barraca. Entrada Livre e venda do CD. Vai ser memorável.
Com muitos artistas convidados como Rui Veloso, João Afonso, Uxia, entre muitos outros. Oiçam aqui o tema, com a cantora galega, "Santiago Campo d'Estrelas (À Galiza)".
http://www.myspace.com/283629900/music/songs/78327598
Maré Negra: NUNCA MAIS!
Sejam Felizes!

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Microconto IV

Voltou atrás no tempo, matou o avô, o pai dele não nasceu, ele não nasceu, não voltou atrás no tempo, não matou o avô, o pai dele nasceu, ele nasceu.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Porque vou votar em Manuel Alegre

Esta é uma declaração de voto a contragosto. Somando erro atrás de erro, Manuel Alegre perdeu muito do capital político e de esperança que uma figura com a sua, que pertence aquela pequena parte do PS com que vale a pena fazer pontes, certamente não merecia. Hoje por hoje toda a gente já percebeu o erro crasso que foi trabalhar para o apoio envenenado do PS de Sócrates. O próprio Bloco de Esquerda, o partido em que costumo votar nas legislativas, vai pagar caro (já está a pagar com algumas dissensões) a contradição que é estar a apoiar um candidato que, nesta campanha, anda a jogar um perigoso jogo do equilibrista, procurando agradar à esquerda sem comprometer o centro. Mesmo a campanha, em si, é uma desilusão, sem chama, sem rumo (o jogo do equilíbrio), e deixando transparecer uma imagem de solidão. Posto isto: vou votar Manuel Alegre. Por duas razões, que se mantém absolutamente válidas: primeiro, porque como a direita pura e dura percebeu muito bem, mas a esquerda mais "radical" parece incapaz de compreender, o verdadeiro candidato de Sócrates não é Alegre, mas Cavaco. Ou será que todo o processo inquinado que levou a um apoio tardio e com ares de forçado, ou a ausência da máquina-PS na campanha, são meras coincidências? A previsível derrota de Alegre vai também, como a direita pura e dura igualmente percebeu, dar uma machadada na ala esquerda do PS, e acabar com veleidades "secessionistas" e de aproximação ao BE, o que interessa a Sócrates e aos seus, e a mais ninguém. Segundo, porque se não vejo grandes diferenças para Sócrates entre ter Alegre ou Cavaco na presidência, já com um possível governo Passos Coelho tudo será diferente. Passos, Cavaco e o FMI: eis a tríade para destruir de vez o estado social em Portugal, e fazer-nos ainda ter saudades dos anos negros de Sócrates.
Pelos motivos que apresentei, preparo-me para engolir um sapo e depositar o meu voto num candidato que pouco me entusiasma. Mas fá-lo-ei sem remorsos: a política é, também mas não só, a arte do possível. Evitar a reeleição de Cavaco deve ser visto como um dever de cidadania para todos os que ainda acreditam num país solidário e livre, e nas funções sociais do Estado. É com muita pena que vejo que alguns não tem noção do facto de este ser um momento paradigmático e crucial para Portugal; preparam-se hoje as condições finais para o derradeiro ataque ao que resta do 25 de Abril, e para trocarmos o estado social pela selvajaria neoliberal. E é com alguma revolta que assisto a uma certa extrema-esquerda atacar todos os dias Alegre mas nunca Cavaco, trabalhando activamente para a vitória da direita, provando mais uma vez, se preciso fosse, que o seu papel actual na história define-se em uma palavra: reaccionário.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Microconto III

Morava no décimo-segundo andar. Apanhava o elevador até ao quinto, depois ia pelas escadas. O anão.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Microconto II

Em criança, levou com uma bola de futebol no meio das pernas. No hospital, retiraram-lhe um testículo. Ficou só com dois.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Microconto

Sempre que passava por ele, ela dizia-lhe olá. Ele nunca lhe respondeu. Ela entrou em depressão e matou-se. Ele era surdo.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Anjo Antigo (5)

Pintura de João de Azevedo (2004)

Manifesto dos economistas aterrorizados (Conclusão)

Conclusão 
DEBATER A POLÍTICA ECONÓMICA, TRAÇAR CAMINHOS PARA REFUNDAR A UNIÃO EUROPEIA

A Europa foi construída, durante três décadas, a partir de uma base tecnocrática que excluiu as populações do debate de política económica. A doutrina neoliberal, que assenta na hipótese, hoje indefensável, da eficiência dos mercados financeiros, deve ser abandonada. É necessário abrir o espaço das políticas possíveis e colocar em debate propostas alternativas e coerentes, capazes de limitar o poder financeiro e preparar a harmonização, no quadro do progresso dos sistemas económicos e sociais europeus. O que supõe a partilha mútua de importantes recursos orçamentais, obtidos através do desenvolvimento de uma fiscalidade europeia fortemente redistributiva. Tal como é necessário libertar os Estados do cerco dos mercados financeiros. Somente desta forma o projecto de construção europeia poderá encontrar uma legitimidade popular e democrática de que hoje carece.


Não é evidentemente realista supor que os 27 países europeus decidam, ao mesmo tempo, encetar uma tamanha ruptura face ao método e aos objectivos da construção europeia. A Comunidade Económica Europeia (CEE) começou com seis países: do mesmo modo, a refundação da União Europeia passará inicialmente por um acordo entre alguns países que desejem explorar caminhos alternativos. À medida que se tornem evidentes as consequências desastrosas das políticas actualmente adoptadas, o debate sobre as alternativas crescerá por toda a Europa. As lutas sociais e as mudanças políticas surgirão a ritmos diferentes, consoante os países. Os governos nacionais tomarão decisões inovadoras. Os que assim o desejem deverão adoptar formas de cooperação reforçadas para tomar medidas audazes em matéria de regulação financeira, de política fiscal e de política social. Através de propostas concretas, estenderemos as mãos aos outros povos para que se juntem a este movimento.

É por isso que nos parece importante esboçar e debater, neste momento, as grandes linhas das políticas económicas alternativas, que tornarão possível esta refundação da construção europeia.

Sinais

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Manifesto dos economistas aterrorizados (falsa evidência nº 10)

Falsa evidência n.º 10:

A CRISE GREGA PERIMITIU FINALMENTE AVANÇAR PARA UM GOVERNO ECONÓMICO E UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA 
A partir de meados de 2009 os mercados financeiros começaram a especular com as dívidas dos países europeus. Globalmente, a forte subida das dívidas e dos défices públicos à escala mundial não provocou (pelo menos ainda) uma subida das taxas de juro de longo prazo: os operadores financeiros estimam que os bancos centrais manterão, por muito tempo, as taxas de juro reais a um nível próximo do zero, e que não existe um risco de inflação nem de incumprimento de pagamento por parte de um grande país. Mas os especuladores aperceberam-se das falhas de organização da zona euro. Enquanto que os governantes de outros países desenvolvidos podem sempre financiar-se junto do seu Banco Central, os países da zona euro renunciaram a essa possibilidade, passando a depender totalmente dos mercados para financiar os seus défices. Num só golpe, a especulação abateu-se sobre os países mais frágeis da zona euro: Grécia, Espanha, Irlanda.


As instâncias europeias e os governos demoraram a reagir, não querendo dar a ideia de que os países membros tinham direito a dispor de um apoio ilimitado dos seus parceiros, e pretendendo, ao mesmo tempo, sancionar a Grécia, culpada por ter mascarado – com a ajuda da Goldman Sachs – a amplitude dos seus défices. Porém, em Maio de 2010, o BCE e os países membros foram forçados a criar com urgência um Fundo de Estabilização, capaz de indicar aos mercados que seria dado um apoio sem limites aos países ameaçados. Em contrapartida, estes deveriam anunciar programas de austeridade orçamental sem precedentes, que os condenam a um recuo da actividade económica no curto prazo e a um longo período de recessão. Sob pressão do FMI e da Comissão Europeia, a Grécia é forçada a privatizar os seus serviços públicos e a Espanha obrigada a flexibilizar o seu mercado de trabalho. E mesmo a França e a Alemanha, que não são vítimas do ataque especulativo, anunciaram medidas restritivas.


Contudo, globalmente, a oferta não é de nenhum modo excessiva na Europa. A situação das finanças públicas é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, deixando margens de manobra orçamental. É por isso necessário reabsorver os desequilíbrios de forma coordenada: os países excedentários do Norte e do centro da Europa devem encetar políticas expansionistas (com o aumento dos salários e das prestações sociais), tendo em vista compensar as políticas restritivas dos países do Sul. Globalmente, a política orçamental não deve ser restritiva na zona euro, tanto mais que a economia europeia não se aproxima do pleno emprego a uma velocidade satisfatória.


Mas, infelizmente, os defensores das políticas orçamentais automáticas e restritivas encontram-se hoje em posição reforçada na Europa. A crise grega fez esquecer as origens da crise financeira. Aqueles que aceitaram apoiar financeiramente os países do Sul querem impor, em contrapartida, um endurecimento do Pacto de Estabilidade. A Comissão e a Alemanha pretendem obrigar todos os países membros a inscrever o objectivo de equilíbrio orçamental nas suas constituições e vigiar as suas políticas orçamentais por comissões de peritos independentes. A Comissão quer impor aos países uma longa cura de austeridade para que se regresse a uma dívida pública inferior a 60% do PIB. Se existe algum avanço em matéria de governo económico europeu, é um avanço em direcção a um governo que, em vez de libertar o garrote das finanças, pretende impor a austeridade e aprofundar as "reformas" estruturais, em detrimento das solidariedades sociais em cada país e entre os diversos países.


A crise oferece de mão beijada, às elites financeiras e aos tecnocratas europeus, a tentação de pôr em prática a "estratégia do choque", tirando proveito da crise para radicalizar a agenda neoliberal. Mas esta política tem poucas hipóteses de sucesso, uma vez que:
  • A diminuição das despesas públicas comprometerá o esforço necessário, à escala europeia, para assegurar despesas futuras (investigação, educação, prestações familiares), apoiar a manutenção da indústria europeia e para investir nos sectores do futuro (economia verde);
  • A crise permitirá impor reduções drásticas nas despesas sociais, objectivo incansavelmente perseguido pelos paladinos do neoliberalismo, comprometendo perigosamente a coesão social, reduzindo a procura efectiva, empurrando as famílias a poupar para as suas reformas e a sua saúde junto das instituições financeiras, responsáveis pela crise;
  • Os governos e as instâncias europeias recusam-se a estruturar a harmonização fiscal, que permitiria um necessário aumento de impostos sobre o sector financeiro, sobre o património e sobre os altos rendimentos;
  • Os países europeus terão de implementar, por um longo período, políticas orçamentais restritivas que vão afectar fortemente o crescimento. As receitas fiscais diminuirão e os saldos públicos apenas registarão ligeiras melhoras. Os rácios de dívida irão degradar-se e os mercados não ficarão tranquilos;
  • Face à diversidade de culturas políticas e sociais, nem todos os países europeus se poderão ajustar à disciplina de ferro imposta pelo Tratado de Maastricht; nem se ajustarão ao seu reforço, que actualmente se prepara. O risco de activação de uma dinâmica generalizada de recusa deste reforço é real.
Para avançar no sentido de um verdadeiro governo económico e de uma verdadeira solidariedade europeia, propomos para discussão duas medidas:

Medida n.º 21 : Desenvolver uma verdadeira fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto sobre os lucros, etc.) e um verdadeiro orçamento europeu, que favoreçam a convergência das economias para uma maior equidade nas condições de acesso aos serviços públicos e serviços sociais nos diferentes Estados membros, com base nas melhores experiências e modelos;

Medida n.º 22 : Lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição pública a taxas de juro reduzidas mas com garantia, e/ou através da emissão monetária do BCE, tendo em vista encetar a reconversão ecológica da economia europeia.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O Espectro da Anarquia

O Espectro da Anarquia - mesa-redonda

Casa da Achada: sábado, 8 de Janeiro, 15h, entrada livre. Organização: UNIPOP

ParticipaçõesAntónio Cunha (Colectivo Casa Viva) , António Pedro Dores (Sociólogo, professor no ISCTE), José Maria Carvalho Ferreira (Economista, professor no ISEG), José Neves (Historiador, professor na FCSH), Miguel Madeira (Economista), Miguel Serras Pereira (Tradutor), Ricardo Noronha (Doutorando em História) - estes quatro últimos também bloggers no excelente Vias de Facto.

«O recurso a etiquetas ideológicas é uma prática recorrente, quer por parte de correntes de pensamento e movimentos sociais e políticos quer por parte dos poderes instituídos. Se para os primeiros uma lógica de fixação identitária parece impô-lo, para o segundo trata-se de uma técnica de definição de um inimigo, interno ou externo, identificável, de um processo de naturalização do recurso à violência autorizada. «Comunismo», «terrorismo», «antiglobalização», «anarquismo» têm sido algumas dessas etiquetas. Mais recentemente, o «anarquismo» – ou mais sofisticadamente as «ideias anarquistas» – instalou-se no espaço mediático a propósito de um conjunto de movimentações sociais contra os poderes instituídos. Detenções, condenações judiciais, cordões policiais em manifestações, a coberto da defesa da democracia contra as «ideias anarquistas», têm, na verdade, sustentado a criminalização de todas as lutas que procuram situar-se para lá da intervenção política e social institucionalizada. Partindo do reconhecimento de que por detrás da designação «anarquismo» se esconde uma enorme pluralidade teórica e prática, a UNIPOP propõe uma discussão acerca do percurso histórico das «ideias anarquistas» em Portugal, bem como uma abordagem cruzada de algumas das tradições teóricas que se colocam sob essa etiqueta.»

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Anjo Antigo (4)

Pintura de João de Azevedo (2004)

Manifesto dos economistas aterrorizados (falsa evidência nº 9)

Falsa evidência n.º 9:

O EURO É UM ESCUDO DE PROTECÇÃO CONTRA A CRISE 
O euro deveria ter funcionado como um factor de protecção contra a crise financeira mundial, uma vez que a supressão da incerteza quanto às taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um factor relevante de instabilidade. Mas não é isso que tem sucedido: a Europa é afectada de uma forma mais dura e prolongada pela crise do que o resto do mundo, por factores que radicam nas opções tomadas no processo de unificação monetária.


Após 1999, a zona euro revelou um crescimento económico relativamente medíocre e um aumento das divergências entre os seus Estados membros em termos de crescimento, inflação, desemprego e desequilíbrios externos. O quadro de política económica da zona euro, que tende a impor políticas macroeconómicas semelhantes a países com situações muito distintas ampliou assim as disparidades de crescimento entre os Estados membros. Na generalidade dos países, sobretudo nos maiores, a introdução do euro não suscitou a prometida aceleração do crescimento. Para outros, o euro trouxe crescimento, mas à custa de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, concentrou todo o peso do ajustamento no trabalho, promovendo a flexibilidade e a austeridade salariais, reduzindo a componente dos salários no rendimento total e aumentando as desigualdades.


Esta trajectória de degradação social foi ganha pela Alemanha, que conseguiu gerar importantes excedentes comerciais à custa dos seus vizinhos e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo uma descida dos custos do trabalho e das prestações sociais que lhe conferiu uma vantagem comercial face aos outros Estados membros, incapazes de tratar de forma igualmente violenta os seus trabalhadores. Os excedentes comerciais alemães limitaram portanto o crescimento de outros países. Os défices orçamentais e comerciais de uns não são senão a contrapartida dos excedentes de outros… O que significa que os Estados membros não foram capazes de definir uma estratégia coordenada.


A zona euro deveria, de facto, ter sido menos afectada pela crise financeira do que os Estados Unidos e o Reino Unido, pois as famílias da zona euro estão nitidamente menos dependentes dos mercados financeiros, que são menos sofisticados. Por outro lado, as finanças públicas encontravam-se em melhor situação; o défice público do conjunto dos países da zona euro era de 0,6% do PIB em 2007, contra os quase 3% dos EUA, do Reino Unido ou do Japão. Mas a zona euro padecia já então de um agravamento profundo dos desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, países escandinavos), comprimiam a massa salarial e a procura interna, acumulando excedentes externos, ao passo que os países do Sul e periféricos (Espanha, Grécia, Irlanda) revelavam um crescimento vigoroso, impulsionado pelas baixas taxas de juro (relativamente à taxa de crescimento), acumulando todavia défices externos.


A crise financeira começou, de facto, nos Estados Unidos, que trataram imediatamente de accionar uma política efectiva de relançamento orçamental e monetário, dando início a um movimento de restauração da regulação financeira. Mas a Europa, pelo contrário, não soube empenhar-se numa política suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental ficou-se timidamente nos cerca de 1,6% do PIB na zona euro, sendo de 3,2% no Reino Unido e de 4,2% nos EUA. As perdas na produção causadas pela crise foram nitidamente mais fortes na zona euro do que nos Estados Unidos. Na zona euro, a agudização dos défices precedeu portanto qualquer política activa, comprometendo os seus resultados.


Simultaneamente, a Comissão Europeia continuou a aprovar procedimentos contra os países em défice excessivo, a ponto de em meados de 2010 praticamente todos os Estados membros da zona euro estarem sujeitos a esses procedimentos. A Comissão obrigou então os Estados membros da zona euro a regressar, até 2013 e 2014, a valores percentuais de défice inferiores a 3%, independentemente da evolução económica que pudesse verificar-se. As instâncias europeias continuaram portanto a exigir políticas salariais restritivas e a regressão sistemática dos sistemas públicos de reforma e de saúde, com o risco evidente de mergulhar o continente na depressão e de suscitar tensões entre os diferentes países. Esta ausência de coordenação e, fundamentalmente, de um verdadeiro orçamento europeu, capazes de suportar uma solidariedade efectiva entre os Estados membros, incitaram os agentes financeiros a afastar-se do euro, preferindo especular abertamente contra ele.


Para que o euro possa proteger realmente os cidadãos europeus da crise, colocamos em debate três medidas
:
Medida n.º 18 : Assegurar uma verdadeira coordenação das políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus;

Medida n.º 19 : Compensar os desequilíbrios da balança de pagamentos na Europa através de um Banco de Pagamentos (que organize os empréstimos entre países europeus);

Medida n.º 20 : Se a crise do euro conduzir à sua desintegração, e enquanto se aguarda pelo surgimento de um orçamento europeu (cf. infra), instituir um regime monetário intra-europeu (com moeda comum do tipo "bancor"), que seja capaz de reorganizar a absorção dos desequilíbrios entre balanças comerciais no seio da Europa.

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

Correio Interno


 André,

            Mais um ano de crescimento português, este 2011. Exportar! parece ser o concordante mote. A classe política dos variados quadrantes ulula: “crescei e exportai!”. E o défice descerá. A riqueza regressará. E o consumo poderá ser, desafogadamente feito, fora da época dos saldos e mais uns fiapos de carne irão à mesa do povo.
2010 excedeu expectativas. O nobre povo “submarinizou-se”, “histórionatou-se”, “PTou-se”, “SCUTou-se”, “PECizou-se”, “papou-se”: – visitaram-no não menos que dois Papas, Bento e Barack – povo que, por uma unha envernizada, não ganhou o Mundial de Futebol. (E ainda houve a mitose de Ronaldo). Este é o povo bafejado. O povo linha da frente. E percebe-se porquê? devotado a Maria, Ela lhe põe a mão por baixo, amparando-o de males e conduzindo-o nas boas acções do mercado do Senhor.
            Deveras, a maneira de ser português, só pode ser milagrosa. Há dias circulavam notícias de que mais um conclusivo estudo concluía que os jovens liceais não sabiam ler, contar, raciocinar, tricotar e outros verbos imprescindíveis à condição bípede. Alevantaram-se vozes concordantes: que era uma vergonha, uns analfabetos, uns burros excluídos do deleite de um Eça de Queirós ou de um Moita Flores, onde é que isto vai parar? no futuro, não compreenderão as traduções do Google Tradutor nos produtos chineses? Mas, o mais interessante, é que ninguém se lembrou: em primeiro lugar, que essa conversa da “burricidade” vem do tempo de Viriato; e segundo, que esses mesmos jovens saem do liceu e, milagre!!!, se tornam gabaritados intelectuais, que escrevem nos jornais, nos blogs, nos livros e revistas, abalizadas opiniões, precisamente, desabafando contra as trovas da burrice que grassa.
            Outro milagre!!! é a História do nosso actual pesar ter começado apenas há 15 anos, parece quererem excluir Cavaco do relógio de cuco do tempo. No tempo dele também não havia dinheiro para se construir o Centro Cultural de Belém, no entanto, construiu-se e derrapou-se à brava, muitos enriqueceram, outros receberam salário, e a economia vivificou. Talvez o professor de economia sabe-tudo aconselhe que gastar é um bom deal, que um TGV, um aeroporto, mais estrada, menos estrada, serão bons benchmarkingspara o povo que, em 2011, terá Presidente e Governo novinhos em folha.

            Um abraço,

Maturino Galvão

sábado, 1 de janeiro de 2011

Insensatez.


Nara Leão, in Insensatez;
Composição: Tom Jobim e Vinícius de Moraes;


Que sejamos todos (um bocado in) sensatos.
Um bonito 2011.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Anjo Antigo (3)

Pintura de João de Azevedo (2004)

Manifesto dos economistas aterrorizados (falsa evidência nº 8)

Falsa evidência n.º 8:

A UNIÃO EUROPEIA DEFENDE O MODELO SOCIAL EUROPEU 
A construção europeia constitui uma experiência ambígua. Nela coexistem duas visões de Europa que não ousam contudo enfrentar-se abertamente. Para os social-democratas, a Europa deveria dedicar-se a promover o modelo social europeu, fruto do compromisso obtido após a Segunda Guerra Mundial, a partir dos princípios que o mesmo consubstancia: protecção social, serviços públicos e políticas industriais. A Europa deveria, nesses termos, ter erguido uma muralha defensiva perante a globalização liberal, uma forma de proteger, manter vivo e fazer progredir o modelo social europeu. A Europa deveria ter defendido uma visão específica sobre a organização da economia mundial e a regulação da globalização através de organizações de governação mundial. Como deveria ter permitido aos seus países membros manter um elevado nível de despesas públicas e de redistribuição, protegendo a sua capacidade de as financiar através da harmonização da fiscalidade sobre as pessoas, as empresas e os rendimentos do capital.


A Europa, contudo, não quis assumir a sua especificidade. A visão hoje dominante em Bruxelas e no seio da maioria dos governos nacionais é, pelo contrário, a de uma Europa liberal, cujo objectivo está centrado em adaptar as sociedades europeias às exigências da globalização: a construção europeia constitui nestes termos a oportunidade de colocar em causa o modelo social europeu e de desregular a economia. A prevalência do direito da concorrência sobre as regulamentações nacionais e sobre os direitos sociais no Mercado Único permitiu introduzir mais concorrência nos mercados de bens e de serviços, diminuir a importância dos serviços públicos e apostar na concorrência entre os trabalhadores europeus. A concorrência social e fiscal permitiu por sua vez reduzir os impostos, sobretudo os que incidem sobre os rendimentos do capital e das empresas (as "bases móveis") e exercer pressão sobre as despesas sociais. Os tratados garantem quatro liberdades fundamentais: a livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais. Mas longe de se restringir ao mercado interno, a liberdade de circulação de capitais foi alargada aos investidores do mundo inteiro, submetendo assim o tecido produtivo europeu aos constrangimentos e imperativos da valorização dos capitais internacionais. A construção europeia configura-se deste modo como uma forma de impor aos povos as reformas neoliberais.

A organização da política macroeconómica (independência do BCE face às estruturas de decisão política, Pacto de Estabilidade) encontra-se marcada pela desconfiança relativamente aos governos democraticamente eleitos. Pretende privar completamente os países da sua autonomia tanto em matéria de política monetária, como de política orçamental. O equilíbrio orçamental deve ser forçosamente atingido, banindo-se qualquer política deliberada de relançamento económico, pelo que apenas se pode participar no jogo da "estabilização automática". Ao nível da zona euro, não se admite nem se concebe nenhuma política conjuntural comum, como não se define qualquer objectivo comum em termos de crescimento ou de emprego. As diferenças quanto à situação em que se encontra cada país não são tidas em conta, pois o Pacto de Estabilidade não se comove nem com as taxas de inflação nem com os défices nacionais externos; os objectivos fixados para as finanças públicas não contemplam a especificidade da situação económica de cada país membro.

As instâncias europeias procuraram impulsionar reformas estruturais (através das Grandes Orientações de Política Económica, do Método Aberto de Coordenação ou da Agenda de Lisboa), com um êxito muito desigual. Como o método de elaboração destas instâncias não é democrático nem mobilizador, a sua orientação liberal jamais poderia contemplar as políticas decididas a nível nacional, atendendo às relações de força existentes em cada país. Esta orientação não pôde assim alcançar os sucessos incontestáveis que teria, de outro modo, legitimado. O movimento de liberalização económica foi posto em causa (com o fracasso da Directiva Bolkestein); tendo alguns países tentado nacionalizar as suas políticas industriais, ao mesmo tempo que a maioria se opôs à europeização das suas políticas fiscais e sociais. A Europa Social continua a ser um conceito vazio de conteúdo, apenas se afirmando vigorosamente a Europa da Concorrência e a Europa da Finança.


Para que a Europa possa promover verdadeiramente o modelo social europeu, colocamos à discussão duas medidas:
Medida n.º 16 : Pôr em causa a livre circulação de capitais e de mercadorias entre a União Europeia e o resto do mundo, renegociando se necessário os acordos multilaterais ou bilaterais actualmente em vigor;

Medida n.º 17 : Substituir a política da concorrência pela "harmonização e prosperidade", enquanto fio condutor da construção europeia, estabelecendo objectivos comuns vinculativos tanto em matéria de progresso social como em matéria de políticas macroeconómicas (através de GOPS: Grandes Orientações de Política Social).

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

In Lato Sensu

Eu sou a disrupção anódina
na mais incerta epígrafe
dos sentidos.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Manifesto dos economistas aterrorizados (falsa evidência nº 7)

Falsa evidência n.º 7:

É PRECISO ASSEGURAR A ESTABILIDADE DOS MERCADOS FINANCEIROS PARA PODER FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICA 
Deve analisar-se, a nível mundial, a correlação entre a subida das dívidas públicas e a financeirização da economia. Nos últimos trinta anos, favoráveis à liberalização total da circulação de capitais, o sector financeiro aumentou consideravelmente a sua influência sobre a economia. As grandes empresas recorrem cada vez menos ao crédito bancário e cada vez mais aos mercados financeiros. Do mesmo modo, as famílias vêem uma parte cada vez maior das suas poupanças ser drenada para o mercado financeiro (como no caso das pensões), através dos diversos produtos de investimento e, inclusivamente, em alguns países, através do financiamento da sua habitação (por crédito hipotecário). Os gestores de carteiras que tentam diversificar os riscos procuram títulos públicos como complemento aos títulos privados. E encontram-nos facilmente nos mercados, em virtude de os governos terem levado a cabo políticas similares, que conduziram a um relançamento dos défices: taxas de juro elevadas, descida dos impostos sobre os altos rendimentos, incentivo maciço à poupança financeira das famílias para favorecer a capitalização através da poupança reforma, etc.


Ao nível europeu, a financeirização da dívida pública encontra-se inscrita nos tratados: com Maastricht, os Bancos Centrais ficaram proibidos de financiar directamente os Estados, que devem encontrar quem lhes conceda empréstimos nos mercados financeiros. Esta "repressão monetária" acompanha a "liberalização financeira" e gera exactamente o contrário das políticas adoptadas após a grave crise da década de 30; politicas de "repressão financeira" (drásticas restrições à liberdade de movimento dos capitais) e de "liberalização monetária" (com o fim do regime do padrão-ouro). Trata-se de submeter os Estados, que se supõe serem por natureza despesistas, à disciplina dos mercados financeiros, que se supõe serem, por natureza, eficientes e omniscientes.


Como resultado desta escolha doutrinária, o Banco Central Europeu não tem por isso legitimidade para subscrever directamente a emissão de obrigações públicas dos Estados europeus. Privados da garantia de se poderem financiar junto do BCE, os países do sul tornaram-se presas fáceis dos ataques especulativos. De facto, ainda que em nome de uma ortodoxia sem fissuras, o Banco Central Europeu – que sempre se recusou a fazê-lo – teve de comprar, desde há alguns meses a esta parte – obrigações de Estado à taxa de juro do mercado, de modo a acalmar as tensões nos mercados de obrigações europeu. Mas nada nos diz que isso seja suficiente, caso a crise da dívida se agrave e as taxas de juro de mercado disparem. Poderá então ser difícil manter esta ortodoxia monetária, que carece, manifestamente, de fundamentos científicos sérios.


Para resolver o problema da dívida pública, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 14 : Autorizar o Banco Central Europeu a financiar directamente os Estados (ou a impor aos bancos comerciais a subscrição de obrigações públicas emitidas), a um juro reduzido, aliviando desse modo o cerco que lhes é imposto pelos mercados financeiros;
Medida n.º 15 : Caso seja necessário, reestruturar a dívida pública, limitando por exemplo o seu peso a determinado valor percentual do PIB, e estabelecendo uma discriminação entre os credores segundo o volume de títulos que possuam: os grande rentistas (particulares ou instituições) deverão aceitar uma extensão da maturidade da dívida, incluindo anulações parciais ou totais. E é igualmente necessário voltar a negociar as exorbitantes taxas de juro dos títulos emitidos pelos países que entraram em dificuldades na sequência da crise.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Há Pessoas com Música Dentro

Há pessoas com música dentro de si.
Um rufo interior com melodias de amor.

Há pessoas que ressoam no seu corpo um
timbre límpido de uma felicidade tonal.

Entre a fruta e o legume, aquela mulher
sussurrava uma melopeia indefinida, mas
certa, no volume e na altura sonora.

Pouco sei dos ritmos do silêncio e das
esferas do sonho. Mas aquela música
estava na contradança perfeita do mundo.

E perto da mulher em suave maresia na salsugem dos dias,
mulher feérica e sapiente, enigma da erva e orégão aromático
deixei-me ficar, fitando-a no seu frugal abastecimento da vida.

Durante a minha estada naquele mercado, o perfume do
seu rumorejar interior perpassou na minha mente e
levei para o caminho esse breve suave toque de um canto.

Depois da viagem, regressado das vagas alterosas da fértil
imagem sentida, deparei-me diante de casa com um saco
cheio de fruta e erva-doce para a combustão dos sonhos.

Mulher da erva, som escandido na primavera dos afectos,
verdura impassível do seu suave canto na lassidão do dia.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Lisbo-a-njos

O nosso João de Azevedo é um dos participantes da colectiva Lisbo-a-njos, a inaugurar na quarta-feira, 22 de Dezembro, na Galeria Paula Cabral. Poderemos, certamente, admirar in loco alguns dos trabalhos que tem apresentado pelo 2+2=5, e que continuaremos a publicar. A não perder. Mais informações aqui.

And everything Goes back to the beginning

And everything Goes back to the beginning

«"That is art." This time I caught her and said, "No, it is not artl On the contrary, it is nature," and prepared myself for an argument. When nothing of the sort occurred, I reflected that the "woman within me" did not have the speech centers I had. And so I suggested that she use mine. She did so and came through with a long statement.
I was greatly intrigued by the fact that a woman should interfere with me from within. My conclusion was that she must be the "soul," in the primitive sense, and I began to speculate on the reasons why the name "anima" was given to the soul. Why was it thought of as feminine? Later I came to see that this inner feminine £gure plays a typical, or archetypal, role in the unconscious of a man, and I called her the "anima." The corresponding £gure in the unconscious of woman I called the "animus. ".»

C. Jung, in 'Confrontation with the Unconscious', Memories, Dreams, Reflections
Laura Nadar

Manifesto dos economistas aterrorizados (falsa evidência nº 6)

Falsa evidência n.º 6:

A DÍVIDA PÚBLICA TRANSFERE O CUSTO DOS NOSSOS EXCESSOS PARA OS NOSSOS NETOS

A afirmação de que a dívida pública constitui uma transferência de riqueza que prejudica as gerações futuras é outra afirmação falaciosa, que confunde economia doméstica com macroeconomia. A dívida pública é um mecanismo de transferência de riqueza, mas é-o sobretudo dos contribuintes comuns para os rentistas.


De facto, baseando-se na crença, raramente comprovada, de que a redução dos impostos estimula o crescimento e aumenta, posteriormente, as receitas públicas, os Estados europeus têm vindo a imitar os Estados Unidos desde 1980, adoptando uma política sistemática de redução da carga fiscal. Multiplicaram-se as reduções de impostos e das contribuições para a segurança social (sobre os lucros das sociedades, sobre os rendimentos dos particulares mais favorecidos, sobre o património e sobre as cotizações patronais), mas o seu impacto no crescimento económico continua a ser muito incerto. As políticas fiscais anti-redistributivas agravaram, por sua vez, e de forma acumulada, as desigualdades sociais e os défices públicos.

Estas políticas de redução fiscal obrigaram as administrações públicas a endividar-se junto dos agregados familiares favorecidos, através dos mercados financeiros, de modo a financiar os défices gerados. É o que se poderia chamar de "efeito jackpot ": com o dinheiro poupado nos seus impostos, os ricos puderam adquirir títulos (portadores de juros) da dívida pública, emitida para financiar os défices públicos provocados pelas reduções de impostos… Por esta via, o serviço da dívida pública em França representa 40.000 milhões de euros, quase tanto como as receitas do imposto sobre o rendimento. Mas esta jogada é ainda mais brilhante, pelo facto de ter conseguido convencer a opinião pública de que os culpados da dívida pública eram os funcionários, os reformados e os doentes.


O aumento da dívida pública na Europa ou nos Estados Unidos não é portanto o resultado de políticas keynesianas expansionistas ou de políticas sociais dispendiosas, mas sim o resultado de uma política que favorece as camadas sociais privilegiadas: as "despesas fiscais" (descida de impostos e de contribuições) aumentaram os rendimentos disponíveis daqueles que menos necessitam, daqueles que desse modo puderam aumentar ainda mais os seus investimentos, sobretudo em Títulos do Tesouro, remunerados em juros pelos impostos pagos por todos os contribuintes. Em suma, estabeleceu-se um mecanismo de redistribuição invertido, das classes populares para as classes mais favorecidas, através da dívida pública, cuja contrapartida é sempre o rendimento privado.


Para corrigir de forma equitativa as finanças públicas na Europa e em França, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 12: Atribuir de novo um carácter fortemente redistributivo à fiscalidade directa sobre os rendimentos (supressão das deduções fiscais, criação de novos escalões de impostos e aumento das taxas sobre os rendimentos…);

Medida n.º 13 : Acabar com as isenções de que beneficiam as empresas que não tenham um efeito relevante sobre o emprego.

Anjo Antigo (1)

Pintura de João de Azevedo (2004)

domingo, 19 de dezembro de 2010

Natural Blues.



«Oh lordy, trouble so hard,
Oh lordy, trouble so hard,
Don't nobody know my troubles but God,
Don't nobody know my troubles but God.»
Moby, Play - Natural Blues, 1999;

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Manifesto dos economistas aterrorizados (falsa evidência nº 5)

Falsa evidência n.º 5:

É PRECISO REDUZIR AS DESPESAS PARA DIMINUIR A DÍVIDA PÚBLICA 
Mesmo que o aumento da dívida pública tivesse resultado, em parte, de um aumento das despesas públicas, o corte destas despesas não contribuiria necessariamente para a solução, porque a dinâmica da dívida pública não tem muito que ver com a de uma casa: a macroeconomia não é redutível à economia doméstica. A dinâmica da dívida depende de vários factores: do nível dos défices primários, mas também da diferença entre a taxa de juro e a taxa de crescimento nominal da economia.


Ora, se o crescimento da economia for mais débil do que a taxa de juro, a dívida cresce mecanicamente devido ao "efeito de bola de neve": o montante dos juros dispara, o mesmo sucedendo com o défice total (que inclui os juros da dívida). Foi assim que, no início da década de noventa, a política do franco forte levada a cabo por Bérégovoy – e que se manteve apesar da recessão de 1993/94 – se traduziu numa taxa de juro durante muito tempo mais elevada do que a taxa de crescimento, o que explica a subida abrupta da dívida pública em França neste período. Trata-se do mesmo mecanismo que permite compreender o aumento da dívida durante a primeira metade da década de oitenta, sob o impacto da revolução neoliberal e da política de taxas de juro elevadas, conduzidas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher.


Mas a própria taxa de crescimento da economia não é independente da despesa pública: no curto prazo, a existência de despesas públicas estáveis limita a magnitude das recessões ("estabilizadores automáticos"); no longo prazo, os investimentos e as despesas públicas (educação, saúde, investigação, infra-estruturas…) estimulam o crescimento. É falso afirmar que todo o défice público aumenta necessariamente a dívida pública, ou que qualquer redução do défice permite reduzir a dívida. Se a redução dos défices compromete a actividade económica, a dívida aumentará ainda mais. Os comentadores liberais sublinham que alguns países (Canadá, Suécia, Israel) efectuaram ajustes brutais nas suas contas públicas nos anos noventa e conheceram, de imediato, um forte salto no crescimento. Mas isso só é possível se o ajustamento se aplicar a um país isolado, que adquire novamente competitividade face aos seus concorrentes. Evidentemente, os partidários do ajustamento estrutural europeu esquecem-se que os países têm como principais clientes e concorrentes os outros países europeus, já que a União Europeia está globalmente pouco aberta ao exterior. Uma redução simultânea e maciça das despesas públicas, no conjunto dos países da União Europeia, apenas pode ter como consequência uma recessão agravada e, portanto, uma nova subida da dívida pública.

Para evitar que o restabelecimento das finanças públicas provoque um desastre social e político, lançamos para debate duas medidas:
Medida n.º 10: Manter os níveis de protecção social e, inclusivamente, reforçá-los (subsídio de desemprego, habitação…);
Medida n.º 11: Aumentar o esforço orçamental em matéria de educação, de investigação e de investimento na reconversão ecológica e ambiental…tendo em vista estabelecer as condições de um crescimento sustentável, capaz de permitir uma forte descida do desemprego.

Origem do Mundo (2)

Pintura de João de Azevedo (1993)

domingo, 12 de dezembro de 2010

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

“Taste is formed in those moments when aesthetic emotion is massive and distinct ; preferences then grown conscious, judgments then put into words, will reverberate through calmer hours ; they will constitute prejudices, habits of apperception, secret standards for all other beauties. A period of life in which such intuitions have been frequent may amass tastes and ideals sufficient for the rest of our days. Youth in these matters governs maturity, and while men may develop their early impressions more systematically and find confirmations of them in various quarters, they will seldom look at the world afresh or use new categories in deciphering it.”
RARENESS OF AESTHETIC FEELING, Little Essays, Santayana
© Michel Medinger, Glass Eye
Laura Nadar

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Quero perdoar

Quero perdoar a toda a gente, mas há uns tipos que me irritam em demasia. Por exemplo, estes, que insistem em fazer obras no meu prédio.

O grande programa revolucionário

ESTAMOS A LUTAR CONTRA O QUÊ??
Estamos a lutar contra o desespero das nossas vidas. Estamos a lutar contra nós próprios, queridos amigos. Estamos a lutar contra os persas, os gregos, os romanos, os cristãos, contra toda a gente. Estamos a lutar contra nós próprios, contra a nossa incomensurável culpa. Contra aquilo que todos somos, a herança dos mortos. Morramos primeiro, e aí podemos fazer escola!
Somos cordeiros destinados ao sacrifício, e devíamos perdoar a essa gente que nos oprime. O seu destino é o pó, como o nosso. Tarde ou cedo, também eles se esquecerão das vãs glórias que estupidamente perseguem. Nós estamos a lutar contra moinhos de vento. O movimento das coisas do mundo é uma estúpida ilusão de plenitude no presente - ninguém sabe o seu destino na verdade! O poder e a gula, de que vos vale na verdade?! O sofrimento dos mais miseráveis dos miseráveis - isso que toda a gente esquece, mesmo quando pensa lutar a favor de algo, a favor deles, que miséria - não percebem que só estamos a lutar por nós mesmos? Isso será sempre o testemunho da maior beleza que existe em viver: nunca desculpar, nunca compreender, mas perdoar sempre. O grande programa revolucionário está escrito há dois mil anos.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Parafraseando Meslier, feliz a Humanidade só o há-de ser quando o último futebolista tiver sido enforcado com as tripas do último dos treinadores de futebol.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Woven Hand e Última vez (2)

Manifesto dos economistas aterrorizados (falsa evidência nº4)

Falsa evidência n.º 4:
A SUBIDA ESPECTACULAR DAS DÍVIDAS PÚBLICAS É O RESULTADO DE UM EXCESSO DE DESPESAS

Michel Pébereau, um dos "padrinhos" da banca francesa, descrevia em 2005, num dos seus relatórios oficiais ad hoc, uma França asfixiada pela dívida pública e que sacrificava as suas gerações futuras ao entregar-se a gastos sociais irreflectidos. O Estado endividava-se como um pai de família alcoólico, que bebe acima das suas posses: é esta a visão que a maioria dos editorialistas costuma propagar. A explosão recente da dívida pública na Europa e no mundo deve-se porém a outra coisa: aos planos de salvamento do sector financeiro e, sobretudo, à recessão provocada pela crise bancária e financeira que começou em 2008: o défice público médio na zona euro era apenas de 0,6% do PIB em 2007, mas a crise fez com que passasse para 7%, em 2010. Ao mesmo tempo, a dívida pública passou de 66% para 84% do PIB.
O aumento da dívida pública, contudo, tanto em França como em muitos outros países europeus, foi inicialmente moderado e antecedeu esta recessão: provém, em larga medida, não de uma tendência para a subida das despesas públicas – dado que, pelo contrário, desde o início da década de noventa estas se encontravam estáveis ou em declínio na União Europeia, em proporção do PIB – mas sim à quebra das receitas públicas, decorrente da debilidade do crescimento económico nesse período e da contra-revolução fiscal que a maioria dos governos levou a cabo nos últimos vinte e cinco anos. A longo prazo, a contra-revolução fiscal alimentou continuamente a dilatação da dívida, de recessão em recessão. Em França, um recente estudo parlamentar situa em 100.000 milhões de euros, em 2010, o custo das descidas de impostos, aprovadas entre 2000 e 2010, sem que neste valor estejam sequer incluídas as exonerações relativas a contribuições para a segurança social (30.000 milhões) e outros "encargos fiscais". Perante a ausência de uma harmonização fiscal, os Estados europeus dedicaram-se livremente à concorrência fiscal, baixando os impostos sobre as empresas, os salários mais elevados e o património. Mesmo que o peso relativo dos factores determinantes varie de país para país, a subida quase generalizada dos défices públicos e dos rácios de dívida pública na Europa, ao longo dos últimos trinta anos, não resulta fundamentalmente de uma deriva danosa das despesas públicas. Um diagnóstico que abre, evidentemente, outras pistas para além da eterna exigência de redução da despesa pública.
Para instaurar um debate público informado acerca da origem da dívida e dos meios de a superar, colocamos em debate uma proposta:

Medida n.º 9: Efectuar uma auditoria pública das dívidas soberanas, de modo a determinar a sua origem e a conhecer a identidade dos principais detentores de títulos de dívida e os respectivos montantes que possuem.

Origem do mundo (1)


Pintura de João de Azevedo (1993)

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mãe-Aniversário

No menos certo de mim, eu sei que te servi, mãe.

Sempre fui aquele rapaz que ia à drogaria com a nota de 20 escudos para comprar
a lixívia com que lavavas os alvos lençóis, ou a acetona com que limpavas as unhas
destemperadas de cor. Ou na padaria, quando comprava aqueles papos-secos que
eu tanto gostava. E que cheirinho tinham. E os palmiers que eu comprava com os
5 escudos que o teu pai, o meu avô Peixe me dava. E quando ele me chamava com
a sua voz tonitruante para lanchar lá em baixo as suas torradas com azeite?
Ele com o seu dedo indicador espalhava o azeite pela torrada. E que sabor!
Que bela infância no seio de uma família maluca! Com risos e gritaria, gente doida
a viver na pobreza de uma felicidade inusitada. E agora, estou mais velho, mãe.

Hoje és tu quem celebras o diadema do mar salgado no estrepitar da vida. Mais
um ano de conquistas e derrotas, de vivências e experiências. E eu, sempre a
derivar na paisagem agreste. Sempre a fugir de ti, na esperança de me tornar
mais crescido. E quando eu andei a pedir-te a bicicleta nova? Aquela cromada,
com jantes amarelas, da Confersil? Tão bonita que era. E lá passei de ano e tive-a!
Anos mais tarde arrependi-me de te pedir estas coisas. Que custam caro, a que
ainda não dava valor, porque não sabia ainda o que era ter de gerir a vida e os
dinheiros. E os all-star que te pedi, vermelhos, lindos? Sou tão infiel e absurdo.
Devia ser mais humilde e recatado. Ser menos criativo e certinho. Vestir bem
e fazer a barba. Ser homem e não apenas um sobre vivente. Ter um emprego
mais confiável e estável, como diz o pai. O teatro, essa loucura em que me meti,
como o pai a desaprovou. Sim, como experiência, aventura. Não como vida, sonho,
utopia e dose maciça de loucura. Mas tu mãe, sempre disseste: - deixa-o fazer
o que ele quer! Tu tens essa inteligência que todas as mães têm. Saber respeitar
o espaço e o tempo do filho. Dar-lhe o ar e asas para voar. Mesmo sem o céu azul
da bonança. Ver-me soletrar as sílabas da vida em devaneios sem fim. Auscultar
a minha dúvida num compasso sempre certo e eficaz. Gostar de ti é amparar-me
nos teus braços, nas tuas palavras mesmo que irónicas ou subtis. Mesmo que na
mais despudorada palavra ou chamada de atenção para os atrevimentos do mundo.

Mãe, hoje és ainda mais sábia que toda a faculdade da vida. Mesmo com todas as
minhas leituras, os meus estudos e graduações, és e serás sempre a Mestra de
olho vivo ao percalços da ciência e da razão. A docente mais arreliadoramente
picuinhas e chata. Por isso és mãe e tens de aguentar as diatribes de um filho
sempre rebelde e muitas vezes incapaz de dizer que te amo. Custa tanto amar
e depois passar o resto dos dias a fingir que te odeio, a desvalorizar a tua educação.
Porque um filho tenta sempre matar o pai e a mãe, faz parte do percurso do
pássaro bisnau, sair da asa e dizer que está tudo errado o que nos foi ensinado
e aquilo que vivemos em família. Faz parte; a arrogância do filho é sempre algo
a que uma mãe tem de se sujeitar, mas no fim, no fim mãe, é de ti que preciso.
No dealbar desta história, és tu quem vence e me convence das heresias do filho
em crescimento lento para a tua idade, a da sageza do espírito e a beleza do olhar.

Por tudo isto, eu sei que vou continuar teu servo e fiel engulho que tens de receber
no teu colo, no teu acalorado braço forte e simplesmente sempre presente.
Sem olhar para trás. No navio de espelhos mais vivo de uma cotovia, a anunciar
o canto da primavera mais branda e serena nos teus olhos. Até já, mãe delicodoce.

Woven Hand e Última vez (1)