quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Existe uma Gisberta em cada um de nós

Neste romance de cordel em que se tem transformado a justiça portuguesa, nada me enojou mais que esta patética e indefensável sentença quanto ao "caso Gisberta". Primeiro, o MP acusa os jovens de "Homicidio Tentado", em vez de "Homicio Involuntário", a forma jurídica óbvia para o crime em questão. Depois, ainda não sastisfeito, deixa cair esta última formulação, passando a "Ofensas à Integridade Física Qualificadas na Forma Consumada". O equivalente a uma chapada. O juiz, para compôr o ramalhete, diz na sentença que este crime hediondo foi "uma brincadeira de mau gosto"; depois, e apesar de os jovens o confessarem várias vezes em tribunal, insiste que os jovens "não agiram por causa da orientação sexual da vítima". No fim, os jovens são condenados a penas irrisórias face à gravidade do crime em questão, com enormes censuras às instituições que os acolheram, afinal as grandes culpadas de tudo isto, e não as "crianças" inocentes. Muito foi dito já sobre este assunto, embora, infelizmente mas não surpreendentemente, quase sempre em blogues, especialmente os conotados com o movimento LGBT. O absurdo e a parcialidade repugnantes desta sentença estão à vista de todos; mas o silêncio que sobre ela se instalou é que é verdadeiramente grave e revelador da sociedade subdensenvolvida e tardo-católica em que (ainda) vivemos. Imagine-se o escandâlo que seria se em vez de Gisberta tivessemos no papel da vítima um indefeso velhinho, torturado barbaramente durante dois dias até uma morte atroz. Imagine-se quantas carpideiras da moral não escreveriam artigos, exigindo a dura aplicação da lei para servir de exemplo, imagine-se João César das Neves a clamar contra o fim dos princípios morais da sociedade, imagine-se Mário Pinto a defender a reorganização do sistema de acolhimento de jovens em risco, imagine-se Vasco Graça Moura a escrever um belo e sentido texto em homenagem à vitima e em repulsa pela putrefacta situação da alma portuguesa. Imagine-se. Até lá, ficamos a saber que há mortes de primeira, de segunda e se calhar de terceira, porque há vidas de primeira, de segunda e se calhar de terceira. Faço minhas as palavras de Ana Sá Lopes, há uns dias no DN: só deixará de ser assim quando percebermos que, também dentro de nós, existe uma Gisberta.

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