segunda-feira, 21 de junho de 2010

Notas sobre o choque e o espanto no Mundial da vuvuzela (2), ou Portugal através da lupa do filósofo Diógenes


Bipolaridade: 12:30, uma cervejaria em Alcântara - vox populi: "não estou nada optimista", "estes tipos não jogam nada"; "ainda perdemos com os coreanos"; "os coreanos têm lá um granda jogador, aquele nº9". 14:30, na mesma cervejaria e na rua: "Por-tu-gal! Por-tu-gal! Fom-fom-fom fom fom! Bi-Bi-bi bi bi"
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O esquecimento é o pai da repetição da história: Sete golos depois, é difícil lembrar como um jogo decorreu verdadeiramente. A euforia e o êxtase tomam conta das cabeças dos portugueses, sobretudo depois daquela garrafa de branco e do Famous Grouse no fim do almoço. Até ao primeiro golo, a coisa não estava a correr bem. Essa potência futebolística que dá pelo nome de Coreia do Norte causava problemas, e tinha, até, mais chances de golo que Portugal. Não tinha, e nunca terá, é Ronaldos, Meireles ou Hugos Almeidas. Após um golo "à Portugal", com boa jogada e enorme mérito do Meireles (a propósito, sem dúvida o melhor em campo. O Tiago foi mais influente no jogo, mas o Meireles foi-o quando o jogo estava difícil, e não quando foi altura do baile), a toada pouco se alterou. Em contrapartida, um inicio fortíssimo de segunda parte da equipa portuguesa (que me deixou, confesso, de boca aberta), resolveu o jogo. A partir daí, foi assistir à derrocada colectiva de uma equipa formatada para defender e aproveitar espaços, e ao festival dos jogadores portugueses, que se apanharam a jogar como mais gostam, com espaço na frente e onde podem tirar proveito da sua técnica, não esquecer que os jogadores portugueses são, com raras excepções, de grande classe. Eu tinha dito a quem estava comigo, que precisava de três golos neste jogo para me reconciliar com a selecção. Fizeram-me a vontade mais que a dobrar. Agora, convém que um jogo em que tudo correu bem não faça esquecer os problemas que se mantém, e que mais abaixo serão descritos, caso contrário será o primeiro passo para que esta seja uma vitória de Pirro.
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O segredo: É altura de revelar o segredo: recebi ontem uma chamada do prof. Carlos Queiroz. Perguntava-me, com ar de preocupado, voz deixando antever o pânico, o que fazer para derrotar a Coreia. Eu disse-lhe: "O Deco não corre. Já que deixaste o Carlos Martins em Portugal, mete o Tiago. E tira aquela múmia do Paulo Ferreira, o Miguel, mesmo gordo, é vinte vezes melhor. O Liedson, ó burro, não rende um boi sozinho na frente. Mais vale o Hugo Almeida, mesmo com todas as limitações que tem, pelo menos é alto, impõe o físico e ganha bolas de cabeça. E o Danny, já percebeste finalmente que é tudo menos extremo, não é? Claro que tem de jogar o Simão naquela posição, já que fizeste o favor de originar a lesão do Nani." Acabo de receber uma nova chamada do professor: "Foda-se André, tinhas razão". Ao que retorqui: "Vês ó Queiroz? Fizesses o que te digo desde o princípio e ganhavas nas calmas à Costa do Marfim. Agora, vê lá se não cedes aos barões lá do teu grupo, e manténs esta como a equipa base, já deu para veres que é a melhor, né?"
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O futuro: Que isto sirva para moralizar uma equipa que não jogava nada há dois anos (desde, precisamente, a entrada do Queiroz para seleccionador), que, como o próprio disse no flash interview, estava mesmo a precisar de um resultado destes, mas que não iluda ninguém, nem ao grupo nem a nós: tudo correu bem neste jogo, contra uma equipa muito fraquinha que, a partir do momento em que teve de atacar organizado, deixou de existir, e desde o 3-0 entrou em pânico, quando começou a aperceber-se que os familiares e amigos iam ser enviados para o campo de concentração. Para que Portugal saia deste Mundial de cabeça erguida vai ter de jogar contra equipas muito fortes, e vai ter de jogar mais. Primeiro, e isto é o essencial, deixar estes jogadores como equipa base, cedendo à tentação do Deco e do Paulo Ferreira. Depois, muito maior  coesão na equipa, linhas mais juntas em ataque organizado, menor distância entre sectores. E já agora, calem-se todos os que falam mal do Fábio Coentrão (o que acontece, evidentemente, apenas por ele jogar no Benfica): gratos devemos todos estar a Jesus, o profeta vermelho, por ter inventado um lateral-esquerdo de classe mundial, finalmente e uns vinte anos depois do último que tivemos.
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O Queiroz: Quem me conhece e quem me lê sabe o pouco em conta que tenho este treinador, um loser que falhou todas as vezes que treinou equipas séniores. Depois deste jogo, e de ter finalmente ouvido as minhas recomendações sobre a melhor equipa inicial, passo a dar a esta selecção o benefício da dúvida, não esquecendo, claro, o que está para trás (o esquecimento é o pai da repetição da história). Mas há algo de muito paradoxal, típico, aliás, do futebol, que não podemos esquecer: este treinador conseguiu deixar as expectativas sobre a prestação desta equipa, uma das melhores do mundo, tão em baixo, que agora qualquer coisa que seja mais que a barraca que se chegou a prever aparece como uma grande vitória. Aquela rara espécie de homens que são os que gostam de futebol e são lúcidos ao mesmo tempo sabem que esta vitória é boa, mas não é nada ainda em relação ao que esta equipa tem obrigação de fazer.

domingo, 20 de junho de 2010

Par'ti Saramago

Estou de luto. A rocha sólida onde te agarravas, cedeu
e por ora, uma raiz nua e tombada, um rábano-silvestre coeso.
Essa planta, Saramago de seu nome, espraia-se por
esse país fora, entre pétalas e sílabas acariciadoras,
preces sem fé nem lei do mais forte. Apenas ecos,
rumores de uma madrugada quente e lânguida, rios
sem foz onde espraiar a inclemência da pontuação.
Tudo segundo o Evangelho, em que Jesus Cristo é
o senhor de Todos os Nomes. Por ora, todos os
seres serão Levantados do Chão dos infernos
temerários e conspurcados pelo dislate da
acefalia Romana-Católica e Apostólica. Numa
terra seca e agreste, não há deuses que resistam
à profusão de seca, suor, sangue e lágrimas de
uma vida feita acre, pó e solidão. O Alentejo não
é para todos e o Ribatejo é feito para todas as
plantas brandas e silvestres que crescem nas
Azinhagas destas margens da vida. Quero uma
Jangada de Pedra em forma de Península Ibérica
para abraçar a dor de partires sem mim. Até Breve!

De joelhos verde


Pintura de João de Azevedo

sábado, 19 de junho de 2010

Fernando Pessoa e a invasão da Abissínia pela Itália fascista (introdução)



Novamente por sugestão do leitor Paulo Ferreira, publicamos três textos de Fernando Pessoa, sobre a invasão da Abissínia (Etiópia) pela Itália, ocorrida em 1935, antecedidos por esta introdução contextualizadora, da autoria de José Barreto, professor do ICS. Estes textos são muito interessantes, em especial por desmentirem um dos mitos produzidos sobre Pessoa, o do seu suposto alinhamento, ou pelo menos indiferença, para com o fascismo.

A pouco mais de um mês da sua morte, ocorrida a 30 de Novembro de 1935, Fernando Pessoa escreveu dois textos sobre a invasão da Abissínia (Etiópia) pela Itália fascista, destinados à imprensa lisboeta, mas que não puderam ser publicados. Pode neles constatar-se o mesmo ânimo crítico com que o escritor vinha produzindo, desde Fevereiro desse ano, uma série de escritos em prosa e em verso contra Salazar e o Estado Novo. Nessa torrente de escrita política de 1935, em que se define claramente o perfil de um opositor não só do salazarismo, como também do fascismo, incluem-se,entre outros: o artigo “Associações secretas”, em defesa da Maçonaria, a que se podem juntar numerosos fragmentos deixados inéditos pelo autor, relacionados com a polémica que o seu artigo desencadeou na imprensa; uma dúzia de poemas satíricos contra Salazar e o Estado Novo; diversos textos e poemas anticatólicos, visando a crescente influência da Igreja na política portuguesa; um longo artigo crítico sobre Salazar, em francês; uma carta ao presidente da República, Óscar Carmona, de protesto contra o governo; uma crítica contundente a um discurso de tom totalitário do ministro da Justiça Manuel Rodrigues. Estes escritos, bem como os artigos sobre a invasão da Abissínia e ainda outros textos produzidos ao longo do ano de 1935 mostram o crescente empenhamento político de Pessoa, na fase final da sua vida, em defesa da liberdade e da dignidade do homem, que ele julga então ameaçadas tanto em Portugal como no mundo.
Embora nunca tivesse consagrado ao tema do fascismo, como doutrina ou regime político, uma análise mais elaborada, Pessoa deixou entre os escritos impublicados da famosa arca numerosos fragmentos e trechos alusivos a Mussolini e ao fascismo, que olhava com desdém e sarcasmo, embora a personalidade do Duce, pelo seu carisma (ou magnetismo, como então se dizia), lhe tivesse merecido uma referência vaga e indirectamente elogiosa, ainda que num contexto de rejeição das ideologias fascistas e nazis. O nacionalismo liberal do “conservador de estilo inglês” Fernando Pessoa não se confundia com o “nacionalismo animal” ou “nacionalismo mórbido” do fascismo italiano — assim o definiu em duas notas que deixou inéditas. Desde logo, o desprezo do fascismo pelas liberdades individuais e a condição de submissão do indivíduo ao Estado totalitário nunca permitiriam a identificação de Pessoa com o regime de Mussolini, tal como não permitiriam a sua identificação com o comunismo. O escritor sustentava, aliás,que havia uma “identidade fundamental” entre os regimes fascista e comunista, em virtude do “anti-liberalismo comum”. Num texto dos anos 20, Pessoa considera o fascismo e o comunismo como forças dissolventes da civilização europeia. Num texto inédito de 1933-1935, Pessoa acrescenta aos dois o nazismo: “Sovietes, comunismo, fascismo, nacional-socialismo — tudo isso é o mesmo facto, o predomínio da espécie, isto é, dos baixos instintos, que são de todos, contra a inteligência, que é do indivíduo só”. Os textos que em 1935 escreveu sobre a guerra ítalo-abissínia, de que adiante se tratará, exprimem a oposição do escritor não só à agressão imperialista da Itália contra a Etiópia, como também ao próprio regime fascista, em que Pessoa via a origem da política agressiva italiana. Não se pretende aqui decidir se estas inequívocas posições do escritor permitem ou não rotular Fernando Pessoa de “antifascista”, questão que já ocupou vários autores, mas viciada à partida por uma definição peculiar de “antifascismo”. As conotações específicas que essa expressão possa ter não invalidam o facto da oposição essencial de Pessoa ao fascismo, ainda que de um ponto de vista conservador liberal. O antifascismo, nacional e internacionalmente, nunca foi propriedade de nenhuma corrente política.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago

"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."
José Saramago, in Ensaio sobre a cegueira

José Saramago (1922-2010)


Era um escritor algo sobrevalorizado, mas escreveu pelo menos dois romances enormes: Levantado do Chão e O Evangelho Segundo Jesus Cristo. E isso não é para qualquer um. Agradava-me também nele que fosse comunista mas heterodoxo (uma espécie rara), que se tivesse pirado para Lanzarote a remoer maledicências sobre o Portugal cavaquista que o quis censurar, e passado desde esse momento a defender uma união com Espanha, e acima de tudo ter sido sempre um homem que pensou com a sua própria cabeça. José Saramago, Nobel da Literatura em 1998, chegou ao fim da sua viagem.

Porque se quer mexer nos feriados?

«Logo havia de dar um exemplo de uma data com significado histórico que ainda permanece na memória colectiva dos portugueses! O «25 de Abril» não é apenas o «Dia da Liberdade». É o dia de comemoração de uma acontecimento específico que se sabe ter ocorrido nesse dia.
Porque não ter dado o exemplo do 10 de Junho, «Dia de Portugal», que tanto pode coincidir com a morte de Camões como noutro dia qualquer?
Ou do 8 de Dezembro, «Dia da Imaculada Conceição», cuja relação com a vida da dita desconheço. Aliás  duvido que uma boa parte da população Portuguesa tenha noção a razão do feriado, aproveite para celebrar a Conceição, dando graças a calendário haver um feriado.»
*

«Segundo a proposta, o 25 de Abril e o 1º de Maio são quando um homem quiser. Até podiam ficar os dois juntos e ganhava-se um fim-de-semana realmente prolongado. O Natal e o primeiro dia do ano ficariam como estão. Já o dia do trabalhador (ou será o “dia do colaborador”?), data celebrada em todo o Mundo ao mesmo tempo, podia ser num dia qualquer. Ricardo Rodrigues explicou que é mais relevante “celebrar o acontecimento do que celebrar o dia em que teve lugar o acontecimento”.
Para atalhar, e seguindo a lógica do deputado dos gravadores, podíamos celebras todos os acontecimentos no mesmo dia. Criava-se o Dia do Feriado Nacional. De manhã, os católicos mais praticantes iam para as procissões, as viúvas visitavam os cemitérios e António Costa discursava na Praça do Município, em Lisboa. À tarde, os trabalhadores subiam a Almirante de Reis, os militares de Abril desciam a Avenida da Liberdade e Cavaco Silva condecorava ex-combatentes. À noite, as famílias trocavam prendas e os foliões abriam garrafas de champanhe.»

Amanhã

Los Santeros em resgate da gloriosa Selecção Nacional

Calma portugueses! Nada está perdido! Os gloriosos e loucos mexicanos Los Santeros lançaram o feitiço vudu que faltava:

Cristiano Ronaldo (IYMWLSYFOHSYA) by Los Santeros

Cara Encarnada


Pintura de João de Azevedo

Este Cansaço que me Alumia

Este cansaço que me alumia é o facho atónito das horas em que quero viver.
Depois, na rota dos navegantes, há solstícios e partidas, escorbuto e diarreia.
Por isso nado à tona, no ensejo de te ver. Foco o teu corpo desabrigado na
enseada dos sonhos e naufrago na rocha da solitária esperança dos amantes.

Essa sageza que de mãos abertas me mostras é um oceanário de eflúvios
e marés de perspicácia. Tenho algas nos pés e um corpo exangue por decompor.
Cresço na falésia mais remota da baía ancorada na memória, pérola aberta
na orla dos sonhos. Fecho a gaveta e durmo na insone perfídia do tempo.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Volver ou Voltar?



«Mi corazon apasionado, que anda todo alborotado, por volver.
Voy camino a la locura y aunque todo me tortura, yo sé querer.
Nos dejamos hace tiempo
pero me llegó el momento de volver
Tu tenías mucha razón me hace daño al corazon y me muero por volver
Y volver volver, volver a tus brazos otra vez, llegaré hasta donde estés
yo sé perder,yo sé perder, quiero volver, volver, volver."
Nos dejamos hace tiempo pero me llegó el momento de perder
Tu tenías mucha razón me hace daño al corazon y me muero por volver
Y volver volver, volver a tus brazos otra vez, llegare hasta donde estes
yo se perder, yo se perder, quiero volver, volver, volver.»

Buika, Volver;

Sobre o tráfico de droga em Moçambique

Drogas: Revisitando a história recente, por Paul Fauvet


Quando a 1 de Junho o presidente Barack Obama nomeou o empresário Mohamed Bachir Suleman como um barão da droga, a reacção avassaladora nos media moçambicanos foi de surpresa, choque - e até mesmo de condenação aos americanos por arruinarem um empresário supostamente inocente. No entanto, a movimentação norteamericana contra um alegado “barão” de drogas moçambicano não deve constituir nenhuma surpresa. Desde meados da década de 1990, Moçambique tem sido usado como corredor por traficantes de drogas, mas até agora nenhuma figura chave no tráfico já foi condenada. Grandes apreensões de droga foram feitas. Assim, em 1995, a polícia apreendeu 40 toneladas de haxixe transportadas por Maputo, em dois camiões. As investigações definharam , e a única pessoa verdadeiramente presa em conexão com esta apreensão foi o condutor de camião Samssudine Satar.
Também em 1995, um laboratório para a produção de mandrax foi descoberto no bairro Trevo, na cidade da Matola. As pessoas que lá trabalhavam atearam-lhe fogo, mas esta tentativa de destruir as provas não deu certo, e os policiais concluíram que o equipamento existente era para a produção em massa de mandrax, uma droga para a qual existe um grande mercado na África do Sul. Os dez trabalhadores asiáticos presos no Trevo, na sua maioria recrutados nas ruas de Bombaim, foram liberados pelo procurador provincial de Maputo, Luis Muthisse, apesar de um juiz se ter recusado a conceder-lhes fiança. A intervenção do Muthisse (que perdeu seu trabalho neste escândalo) foi um dos muitos indícios de conluio de alto nível com os traficantes.
Os dez asiáticos, apesar de serem paupérrimos, foram capazes de contratar os serviços de um advogado de topo, Maximo Dias, que se recusou a dizer aos repórteres quem lhe estava pagando. Coincidentemente, Dias é agora o advogado de Mohamed Bachir Suleman. Os equipamentos para a fabricação do mandrax tinham sido importados através da empresa de pesca Afropesca. O director-geral da Afropesca, o empresário espanhol Luis da Costa Virott, foi preso, sob suspeita de tráfico de haxixe do Paquistão para Moçambique. Como os dez asiáticos, ele foi misteriosamente libertado após a intervenção de um advogado português de renome. A liberação foi condicionada a Virott permanecer no país - mas alguns dias depois ele estava num avião rumo a Lisboa e não houve nenhuma tentativa para detê-lo.
Em Agosto de 1997, 12 toneladas de haxixe foram apreendidas a partir de um esconderijo em Quissanga, na província nortenha de Cabo Delgado. Um empresário conhecido, Gulamo Rassul, foi preso em conexão com este caso. Esta foi a sua segunda prisão em conexão com drogas - ele já havia sido nomeado em conexão com o tráfico de haxixe para a América e Europa a partir do porto de Nacala, em recipientes onde a droga era disfarçada como chá. Quando este caso foi a julgamento no ano seguinte, intervenientes menores – pescadores de Quissanga e proprietários de embarcações – receberam longas sentenças, mas os homens que a acusação considerava como os barões da droga, Rassul e um certo Momade Bachir (nenhuma relação com Bachir Suleman), foram absolvidos. Assim, o motorista de Rassul apanhou uma pena de cadeia de 12 anos, mas o juiz levou o público a acreditar que Rassul não sabia nada da actividade do seu motorista. Tráfico ocorre também de barco pelo Canal de Moçambique, em águas territoriais de Moçambique. Isso veio à luz dramaticamente quando um barco que transportava haxixe encalhou nas rochas ao largo da costa da província de Inhambane, em Junho de 2000. Cerca de 16 toneladas de haxixe acondicionado em latas deram à costa. Os nove paquistaneses que escaparam do naufrágio foram condenados a longas penas de prisão. Mas nada de novo foi revelado sobre o destino do haxixe ou os seus proprietários. Aqueles que têm investigado o tráfico de drogas, chegaram a algumas conclusões surpreendentes. Com sede em Londres, o jornalista Joseph Hanlon escreveu, num artigo publicado em 28 de Junho de 2001, no “Metical” editado por Carlos Cardoso, que “o valor das drogas ilegais passando por Moçambique é provavelmente mais do que todo o comércio externo legal combinado, de acordo com peritos internacionais” (Isso foi antes da fundição de alumínio Mozal, a base das exportações de Moçambique, ter atingido a sua produção de cruzeiro). Esses peritos (que não foram nomeados) “estimam que mais de uma tonelada por mês de cocaína e heroína estão agora passando por Moçambique”. Aquele tráfico de drogas mensais tinham um valor de retalho estimado em cerca de 50 milhões de US dólares.
Dado que Moçambique é essencialmente uma via de trânsito ao invés de um consumidor de drogas ilícitas, a maior parte do dinheiro das operações acaba fora do país. Mas Hanlon sugeriu que talvez 10 por cento fosse a quota dispensada aos traficantes locais - o que seriam 60 milhões de dólares por ano. Hanlon sugeriu que “o dinheiro da droga deve ser um dos factores dos crescimentos recorde de Moçambique nos últimos anos”. Este artigo identificou duas rotas da droga. Hanlon escreveu que a heroína se movimenta do Paquistão para o Dubai, em seguida, para a Tanzânia e Moçambique, antes que seja eventualmente canalizada para a Europa. A rota da cocaína está noutra direcção “da Colômbia para o Brasil, depois para Moçambique a caminho da Europa e da Ásia Oriental”. Hanlon alegou que o dinheiro destas drogas duras, mas também do haxixe e mandrax, é lavado por meio de bancos e casas de câmbio. A explosão do número de casas de câmbio (41 no momento do artigo de Hanlon) é certamente difícil de explicar, dado o tamanho relativamente pequeno da economia legal. O artigo de Hanlon, não suscitou qualquer desmentido indignado. Nenhuma fonte oficial tentou refutar as afirmações de Hanlon. E Hanlon estava longe de estar sozinho no alerta para os perigos do tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e o crime organizado.
Num discurso feito num seminário internacional realizado em Coimbra em 2003, o juiz Augusto Paulino, agora PGR, assinalou muitos dos mesmos pontos. Ele concordou que Moçambique se tornou uma zona de trânsito no tráfico de cocaína e que uma segunda rede “activa desde 1992, constituída principalmente por cidadãos paquistaneses e moçambicanos de origem paquistanesa, se está concentrando em haxixe e mandrax”. No topo disto, vem a rota da heroína, a partir do Paquistão para a Tanzânia e Moçambique e depois para a Europa. “As várias redes de tráfico de drogas são empresas bem organizadas”, disse Paulino, “talvez mais organizadas do que as estruturas do Estado, envolvendo importadores, exportadores e transportadores de drogas, operadores no terreno e informantes”. Paulino não tinha dúvidas de que isso só foi possível com a conivência de funcionários corruptos dentro do Estado moçambicano. “Os funcionários aduaneiros são subornados para deixar as drogas passarem, os oficiais de imigração facilitam documentos de identificação e de residência, os policiais são pagos para olhar para o lado, e é ainda dito que os magistrados recebem subornos para ordenar liberações ilegais”, observou ele. Os lucros da droga foram lavados, e o resultado foi a proliferação de “mansões e carros de luxo” - mas parte do dinheiro seria “reinvestido” em negócios legais para dissipar suspeitas no futuro”.
Nos sete anos desde que Paulino falou, nenhum traficante significativo foi preso, mas há poucas dúvidas de que Moçambique continue no mapa dos traficantes. Regularmente serviços policiais e aduaneiros anunciam a apreensão de cocaína nos aeroportos de Maputo e Beira, muitas vezes transportada no estômago de jovens mulheres moçambicanas que viajam a partir do Brasil. Em nenhum caso, as mulheres revelaram quem as contratou. O medo de represálias é claramente maior do que o medo da prisão. E por todos aqueles que estão presos - quantos mais passam os aeroportos sem serem detectados? Um dos parlamentares mais experientes no Partido Frelimo, Teodato Hunguana, em 2002, advertiu que se o Estado não tomar medidas contra os bandidos, serão os bandidos a capturar o Estado. “A única maneira de impedir que o Estado caia definitivamente nas malhas do crime é desencadear uma guerra sem quartel contra os senhores do crime”, disse Hunguana. Se a guerra fôr limitada apenas aos homens do gatilho e aos peixes pequenos, deixando de fora o que os americanos chamam de “barões” intocáveis, isto permitirá que eles” se tornem cada vez mais poderosos e capazes de tomarem o próprio Estado”.
Quando Paulino ou Hunguana fizeram soar as suas advertências, eles foram amplamente aplaudidos pelos meios de comunicação do país - os mesmos media que hoje levantam as mãos horrorizados por o presidente norte-americano e o Departamento do Tesouro terem dado um passo sério na luta contra o crime organizado. É claro que teria sido muito melhor se os departamentos moçambicanos encarregues da aplicação da lei e ordem moçambicana estivessem dispostos e aptos a identificar e trazer à justiça os barões da droga. Porque não fizeram isso, é perfeitamente razoável que os americanos tenham decidido tomar medidas para proteger o seu sistema financeiro de dinheiro sujo de Moçambique, assim como eles fazem quando o dinheiro vem da Colômbia. Obama merece elogios pela sua acção, e não um coro abusado de antiamericanismo barato.



Sérgio Santimano
, via Ponte Moçambique-Suécia

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (8 e final)


quarta-feira, 16 de junho de 2010

E o pargo sou eu?

Chego aqui pela primeira vez e tenho de dizer: estou farto disto!
-Peço desculpa! Proferi esta declaração a quente!
Estou na praia com 30º Celsius, (ou serão Centígrados)?
Impossível poder falar a frio assim!
Esperem! Vou ao banho! Já volto!

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Ora já voltei! Pois adoro este dois mais dois igual a deco!
-Como? Cinco? cinco mais cinco igual a deco!
-Como? Dois? Cinco decos mais dois decos igual a zero?

Vamos lá falar com frieza? dois mais dois igual à defesa do consumidor (deco)?
dois minutos à esquerda mais cinco minutos à direita igual a deco?

Olhem, sabem que mais? Viva a Suíça! Onde dois mais dois igual a vitória!
Sem espinhas nem decos, nem reco-recos! Nem marrecos!

Agora sim...estou a falar a frio! Falar, escrever! Tudo a mesma coisa!

E o pargo sou eu????

Cabisbaixo encarnado


Pintura de João de Azevedo

Alterações e outras por vir

Os mais atentos repararão em algumas alterações  no layout do blogue. Uma delas foi a de passar a separar, na barra informativa à direita, os colaboradores que se mantém no activo daqueles que entretanto saíram. Esta é uma mudança que nunca tinha sido feita desde a criação do 2+2=5, há praticamente cinco anos. Entendeu-se ser o mais indicado, já que era um pouco estranho estar a assinalar como autores do blogue pessoas que deixaram de colaborar há muito tempo, e outras que assumiram expressamente a vontade em sair. 
Caso exista algum lapso na lista (já que, eu sei, nem toda a gente consulta o mail com a mesma regularidade), agradeço que mo indiquem para o mail do blogue.
Entretanto, estamos em fase final das negociações para a contratação de algumas aquisições de grande qualidade. O acordo final deve estar selado nos próximos dias.

Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana, por Jason Sumich (7)

Um dos exemplos mais visíveis do aparecimento de novas distinções foi a criação da escola da FRELIMO em Maputo, destinada aos filhos dos altos membros do partido. O propósito desta escola era instruir os líderes do futuro, e aqui a ligação entre educação de qualidade e estatuto e poder era bastante explícita, como é demonstrado pelo exemplo seguinte.
Catarina nasceu em 1975 no seio de uma família ligada à FRELIMO; o seu pai foi ministro do governo. Foi educada na escola da FRELIMO até aos 9 anos. Havia mais 30 alunos na sua turma, todos eles oriundos de famílias de elite. De acordo com Catarina, as regras de disciplina da escola eram muito rígidas. Quando um professor entrava na sala, os alunos tinham de se levantar, saudar o professor e aguardar permissão para se sentarem. O programa de estudo era rigoroso e os alunos tinham melhores professores (na sua maioria expatriados), melhor comida e melhores materiais. Tinham até um autocarro para os levar e trazer, um luxo praticamente inaudito naquela época. Os estudantes normais, que iam a pé para a escola, costumavam zombar deles quando os viam passar, comparando-os a gado numa camioneta. Outra amiga minha lembra-se de sentir ódio pelos privilégios dos alunos da escola da FRELIMO, confessando-me que ela e os amigos costumavam arremessar pedras contra o autocarro escolar quando este passava na rua.
O propósito declarado desta escola era ensinar os futuros líderes a construírem o socialismo. Porém, apesar da retórica igualitária, a escola desempenhou um papel essencial na criação de um grupo privilegiado de pessoas enquanto classe à parte. A julgar pela hostilidade que a escola da FRELIMO inspirava, fica-se com a impressão de que o seu propósito era amplamente reconhecido. A crescente estratificação social foi inicialmente desencadeada pelo enorme aumento da mobilidade social, particularmente em Maputo, que se verificou após a independência do país. O êxodo dos portugueses deixara vagos praticamente todos os cargos profissionais e administrativos do país e, pela primeira vez, os moçambicanos viam-se promovidos às posições anteriormente ocupadas pelos colonialistas. Durante o meu trabalho de campo recolhi numerosos testemunhos de estudantes que se viam subitamente promovidos a professores, de trabalhadores que davam por si, praticamente de um dia para o outro, nas juntas que geriam as suas fábricas (Sumich, no prelo). Quase todos aqueles que tivessem algum tipo de instrução conseguiam arranjar emprego, se o desejassem. Com a abertura do sistema educativo não apenas aos jovens, como também aos adultos, a oportunidade de se obter distinção e poder sociais através da educação parecia de facto ter sido alargada a toda a população urbana. No entanto, devido à crise económica e à guerra civil que continuava a alastrar, em breve se desenvolvia uma economia de privação, pelo que, para muitas pessoas, a educação e a economia «moderna» continuavam a estar para além do seu alcance.
Pude compreendê-lo claramente durante um jantar com uma família de Maputo. Depois da refeição, a anfitriã mostrou-nos um álbum de fotografias dos primeiros anos do seu casamento, logo a seguir à revolução. Ao olharem para as fotografias, os filhos dela e alguns dos parentes mais jovens desataram a rir. Como acontece com os adolescentes de todo o mundo, os jovens achavam divertidos os enormes penteados «afro» e as roupas fora de moda dos pais, mas estavam também chocados ao notarem a extrema magreza de todos os fotografados e a péssima qualidade das suas roupas e das peças de mobiliário. A anfitriã tentou explicar que naquele tempo — o tempo de fome, como lhe chamou — não havia mais nada para comprar. Ouvi com frequência comentários semelhantes durante as discussões furiosas a que assisti durante o meu trabalho de campo sobre o legado do período socialista. Alguns afirmavam que no tempo de Samora (a presidência de Samora Machel) as coisas eram melhores, já que pelo menos havia ordem, um objectivo claro e pouca criminalidade; outros, mais cínicos, contrapunham que a criminalidade era rara porque não havia nada para roubar. Outros ainda defendiam essa espécie de solidariedade negativa do período socialista, afirmando que, pelo menos nessa altura, todos (a elite e a população em geral) eram igualmente pobres, ao contrário do que se verifica no presente, dominado por elites abastadas que tudo monopolizam. Porém, mesmo os mais fervorosos defensores do tempo da revolução admitiam que, apesar da solidariedade e da euforia em torno da construção da nova nação, os tempos eram muito difíceis e a maioria das pessoas passava fome — um caso à parte era o dos poucos felizardos que tinham contactos em Portugal e que regressavam das suas viagens tão carregados de produtos que o aeroporto mais parecia um mercado de rua. Embora a FRELIMO tivesse conseguido alargar o sistema, a distinção e o estatuto que ele simbolizava continuavam a ser difíceis de alcançar, mesmo para a elite privilegiada da capital.
A transição para o capitalismo não atenuou necessariamente esta situação. Em alguns casos houve talvez um agravamento das diferenças de estatuto e, uma vez mais, a disponibilidade de novos tipos e formas de educação assinalou mudanças mais alargadas dentro da ideologia de modernidade. A escola da FRELIMO há muito foi encerrada, mas tal não significa que os filhos da elite tenham sido reintegrados no sistema de ensino público frequentado pela maioria da população; na verdade, afastaram-se ainda mais dele graças a uma rede emergente de escolas privadas e internacionais. Bastará hoje um rápido passeio por Maputo para que notemos as diferenças entre as escolas da elite e as escolas públicas. A cidade tem muitas escolas, mas a maioria delas está em mau estado de conservação, com a tinta das paredes descascada e os vidros das janelas partidos. Os estudantes passam por estes edifícios ao longo do dia, vaga após vaga, já que o excesso de alunos obriga as escolas a trabalharem por turnos. No outro lado da cidade, no Bairro Triunfo (uma zona de elite), a situação é muito diferente. É numa rua sem saída, algo resguardada, ligeiramente desviada da estrada principal, que se situam muitas das escolas privadas e internacionais da capital. Embora a rua não esteja alcatroada, a diferença entre estas escolas e as instituições públicas é evidente. Muitas delas têm dois ou três andares, as paredes estão pintadas de fresco, as janelas intactas e os alunos são deixados à porta por uma grande variedade de carros e jipes de luxo. As instalações são de qualidade muito superior, os professores (moçambicanos e estrangeiros) contam-se entre os mais competentes do país e as propinas mensais oscilavam, em 2002-2004, entre os 100 dólares — um montante muito elevado, mesmo para uma família de classe média — e os 1000 dólares, um valor que excede em muito as possibilidades de todos os moçambicanos que não pertençam à elite. Embora muitos dos jovens da elite frequentem escolas no estrangeiro — a África do Sul, a Suazilândia, o Brasil, Portugal e o Reino Unido encontram- -se entre os destinos mais comuns —, a maioria deles completa a instrução básica nestas escolas privadas e internacionais. A maior parte destes jovens de elite desconhece em absoluto as escolas públicas, e as diferenças de classe em Maputo são claramente demonstradas pelo tipo de escola que se frequenta.
Uma vez que a educação é um dos pontos fundamentais da ideologia de modernidade da elite, as diferenças de acesso à mesma revestem-se de um poder tanto simbólico quanto real. A elite dominante de Moçambique obtém o seu poder por meio da sua ligação ao Estado e ao partido da FRELIMO. Sob este aspecto, desenvolveu algumas das características de algo a que se tem chamado burguesia estatal (Leys, 1982; Cohen, 1982). Todavia, a queda do socialismo abriu novas oportunidades aos membros desta elite, que se mostram cada vez mais propensos a ultrapassarem as fronteiras de Maputo e a expandirem-se para redes internacionais. A privatização dos bens do Estado permitiu à elite da FRELIMO adquirir empresas, propriedades e casas e o influxo de companhias multinacionais e de organizações de apoio ligadas à comunidade internacional proporcionou também novas e lucrativas oportunidades aos antigos membros do governo e suas famílias. Muitos dos membros da elite passam a sua vida profissional numa rotatividade entre o governo, a comunidade internacional e as empresas privadas. A educação de qualidade superior proporciona à elite as qualificações necessárias para tirar proveito destas novas oportunidades, as quais permanecem inacessíveis ao resto da população, ainda que se afirme que o sistema se baseia no mérito pessoal. Isto não significa que não existam divisões no seio da elite; muitos dos membros mais estudiosos desprezam os menos aplicados, alguns dos quais, pelo que se ouve dizer, passam sete anos na Cidade do Cabo a tentarem concluir um curso de três anos. Continuam a travar-se debates ferozes sobre a direcção futura do país. Porém, os membros da elite podem recorrer ao argumento de que a sua posição elevada se justifica plenamente, já que eles são os únicos que possuem as qualificações e a experiência necessárias para governarem uma nação moderna. Esta ideologia cria um «campo unificador» que garante a coesão das diferentes facções da elite e constitui o núcleo da sua identidade de grupo (Gledhill, 2002).
A educação e o estatuto de elite tendem a reforçar-se mutuamente, com a educação a fornecer as qualificações necessárias e a entrada na elite, o que, por sua vez, permite o acesso a redes sociais extremamente poderosas. Esta posição de domínio é expressa pelos membros da elite através de determinados padrões de consumo e de auto-apresentação. O facto tornou-se-me evidente durante uma conversa com uma mulher cujos pais são membros destacados da FRELIMO. Na opinião desta moçambicana, a RENAMO não tem capacidade para dirigir o país, já que os seus membros não passam, de acordo com as suas palavras, de camponeses incultos. A mulher ilustrou as suas afirmações com o seguinte exemplo:

"Lembro-me do que se passou em 1992, quando foi declarada a paz e a RENAMO saiu do mato. Deram-lhes casas — pelo menos aos sujeitos mais importantes do partido. Era um dos termos do acordo de paz. Quando eles [RENAMO] aqui chegaram, não faziam ideia de como se vive numa cidade. Costumavam estender a roupa nos relvados à frente das casas, imagina! E esta gente acha que consegue dirigir um país. É uma anedota; eles nunca tinham saído do mato."

Perguntei-lhe se as coisas não teriam sido similares quando a FRELIMO «saiu do mato» pela primeira vez, terminada a guerra da independência. Ela retorquiu, surpreendida: «Claro que não. Os da FRELIMO lutavam no mato, mas sabiam viver numa cidade, não eram ignorantes.» Assim, a auto-apresentação com base no consumo de bens de prestígio — automóveis, roupas ocidentais e uma educação cara e de alta qualidade — constitui um factor crucial da expressão de modernidade e de poder social (Bourdieu, 1984; Vom Bruck, 2005). Trata-se de uma afirmação de superioridade em relação à maioria da população moçambicana, bem como de uma afirmação de igualdade em relação ao mundo exterior. Estas afirmações de estatuto e poder são reconhecidas pela população de Maputo em geral, ainda que as pessoas contestem a justiça das mesmas. Certa ocasião fui abordado num café por um homem que procurou convencer-me de que eu, como estrangeiro, tinha a obrigação de o ajudar a financiar a sua revolução contra o injusto estado de coisas actual. Quando lhe perguntei o que resultaria da sua revolução, o homem sorriu e replicou: «Nessa altura serei eu a andar de Mercedes.» Embora afirmasse desejar uma revolução, o homem apresentava uma lógica semelhante à das elites. Não defendia argumentos de redistribuição da riqueza, limitando-se a argumentar que os símbolos de poder social (no caso, um Mercedes, o automóvel usado pelos ministros do governo) estavam nas mãos das pessoas erradas. A sua revolução garantiria que esses objectos passassem para as pessoas certas — neste caso, ele próprio.

Notas sobre o choque e o espanto no Mundial da vuvuzela


Hipnotizados por um zumbido insuportável que não se cala um minuto durante a fatídica hora e meia, os jogadores vão trocando lentamente a bola, indiferentes ao objectivo principal do belo jogo. Dir-se-ia estarem em transe, incapazes de recuperar a lucidez futebolística tantas vezes demonstrada. Um golo, neste Mundial, já se viu, acontece por acaso, quase por dádiva, quando é a vez dos defesas entrarem no sono profundo que lhes é soprado das bancadas.
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O único jogador que ouvi falar bem da vuvuzela foi o David Villa. Nem de propósito a poderosa selecção espanhola acaba de perder com a operária Suíça, depois de uma parte inteira narcotizada pelo zumbido.
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E Portugal? Há que compreender os nossos rapazes. Não é fácil jogar sem treinador. Os jogadores têm "posições", e esse é o maior problema. Estáticos, agarrados aos vinte metros em que o treinador os mandou ficar, parecem actores em rígidas posições de "três quartos" naquelas peças mal encenadas do teatro amador. Perceba-se a diferença: enquanto a Espanha passou um jogo inteiro a circular a bola, Portugal não consegue ligar dois passes. A vuvuzela não explica tudo. Deco está fora de forma, mas onde está o jogador para o substituir? Ficou em Portugal. Liedson joga abandonado entre os centrais, mas se naturalizaram o escanzelado goleador lagarto, não deviam saber que as suas qualidades de rato de área exigem um outro avançado ao lado, para lhe abrir os espaços? Tudo parece feito por acaso, sem método, desde o primeiro jogo da qualificação, e é este treinador apelidado de "professor" e de "grande especialista em métodos de trabalho". Entretanto, o Nani e o Deco lançam declarações incendiárias: os jogadores não são parvos, e estão a perder a confiança no seleccionador. Oxalá me engane, e Portugal tem jogadores para, mesmo perante uma derrocada do colectivo, conseguir resolver jogos individualmente, mas tudo isto me cheira demasiado a oliveirinha e de menos a um certo treinador brasileiro, tão criticado, que levou Portugal aos melhores resultados da história do seu futebol.