A hora já não era de ponta no cubículo de papel selado e carimbos. A menina Lurdes pegara no lenço de papel rosa e limpara uma lágrima esquiva, o chefe palmatoara-a verbalmente, sem comas, por mais um ofício mal amanhado, um reles b ortografado q que a atraiçoara e que não viera de Viseu que a máquina não tinha sotaque, soluçando apenas nas maiúsculas em dias ímpares, era mesmo internacional, como a pensão do lado, conhecida pelo gato francês recepcionista, sem cauda nem piano. Com o alfabeto Lurdes tinha um conflito latente, era mais a tabuada o seu jeito, mas metera-se a dactilógrafa e ofícios era o que mais batia – onde já vai este tempo em que a dactilografia era um horizonte!?.
Clip impacientava-se, na secretária de Lurdes, a noite era o seu reino desejado. Era voluntário da sua própria causa, militante do seu parafuso a menos, e lá se metia, Clip clandestino, em aventurosas situações. A sua pancada era saltar para o goto de qualquer incauto e provocar uma asfixia erótica e arroxeada, que lhe quebrasse a rotina. No goto o Clip flipava de gozo : era mesmo um Clip de imaginadas curtições vanguardistas, ele que nunca saíra de Campo de Ourique. Rebelara-se contra esse papel redutor de ajuntador de folhas a que fora condenado sem remissão, e sem perspectiva de progressão na carreira, obrigado a 40 anos de serviço, quarenta!, decidira-se pelo desvio à norma. Zeus que ajuntasse nuvens que ele não ajuntaria papeis. Embora tímido ansiava a visibilidade, como qualquer vocacionado serial killler.
Além de tudo o mais, não surgira o agrafo, essa modernice, a justificar a sua ira permanente? Detestava os agrafos, essa coisinha que feria o papel e o fazia abraçar-se incestuoso, num gesto definitivo, para a vida, como na velha monogamia. No aperto das folhas o nosso Clip era mais brando, amigando-as num gesto de proximidade terna quase apenas sugerido embora a golpes de tédio.
Clip tinha também noção dos seu pergaminhos : alguns de entre os mais notáveis Cliperes tinham nome próprio, além de que um Clip era parte dos Clipes, da família dos Clipes, célebres por terem estado presentes em tudo o que a história regista como solenidade e charneira desde a invenção do papel. Não clipara o acordo de Yalta um célebre Clip, um Clip como já não há, um Clipossauro? E o muro não caíra por o terem os Clipes desclipado? E não fora Leonardo o criador da forma Clip?
Mas ao Clip da dactilógrafa Lurdes, mais que a inovação agrafos, perturbava-o saber que existiam parentes bastardos, de plástico. Foleirice dos tempos correntes, esta visão obcecara-o, tornara-o vingativo-dependente. Imitações de plástico da forma clípica? O desejo de vingança acentuou-se e uma vontade cliptocídica tomou-o de assalto. Pensara ser um Clip bomba, um suicida Clip, mas não lhe chegara a coragem, teria de cursar primeiro a via da fé cega e ele, naquele convívio diário com o papel tornara-se laico, republicano e socialista. Mas a tara vingativo-dependente não o largava. Que fazer? Eclipsar-se noite sim noite não, imiscuir-se na intimidade gastronómica dos outros, disfarçar-se de Clip no mundo das profusas saladas, juntar folhas de alface numa original forma de apresentar pratos, entrar pela nouvelle cuisine dentro, esse design de pendurar nas paredes do estômago.
Uns anos passados e o currículo do nosso Clip, Clip de nome próprio e Clip de apelido, Clip Clip portanto, Biclip para os mais chegados, já somava incontáveis viagens pelos gotos deste público alvo - como se sabe os amantes da nouvelle cuisine viajam muito pois é uma cozinha que se apanha muito no avião. Tornou-se um clip viajado. O que mais lhe custava era o regresso à caixinha da Lurdes e ao simplório cubículo burocrático. Ter de atravessar laringe, traqueia, e depois ser cuspido sem pára quedas, era desporto radical. Mas voltar à base, ao cubículo de Lurdes era humilhação, desclassificação.
Hoje o nosso Clip reformou-se e está num lar de velhinhos Cliptómanos que o afagam com ímpeto coleccionador.
f.arom