segunda-feira, 28 de março de 2011

Our wild nature

"- And what excellent tools for observation we have in our senses! Take the nose, for instance - no philosopher has ever mentioned the nose with admiration and gratitude, even though it is the most delicate instrument we have at our disposal: noses can detect tiny differences in motion that even spectroscopes do not notice. We have science these days precisely to the extent that we have decided to accept the testimony of the senses, - to the extent that we have learned to sharpen them, arm them, and think them through to the end. Everything else is deformity and pre-science: I mean metaphysics, theology, psychology, epistemology. Or formal science, a system of signs: like logic and that application of logic, mathematics. They do not have anything to do with reality, not even as a problem; they are equally distant from the question of whether a sign-convention like logic has any value at all. -"
F. Nietzsche, in ‘Twilight of the Idols or How to Philosophize with a Hammer’



© Ione Rucquoi, My Cock & I, 2006
Laura Nadar

Eis o Sporting

Porrada entre sócios, máfia russa, umas eleições em que ou há uma chapelada eleitoral ou uma tentativa de golpada, arruaceiros à solta, insultos e pedradas ao vencedor, este a fugir dos adeptos e a fazer o discurso de  vitória à porta fechada... Eis o Sporting.

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

segunda-feira, 21 de março de 2011

Dia da Poesia

                   Três Tempos

Hoje queria escrever-te coisas tão bonitas como o tempo
mas não consigo
não sou capaz

Sou falho de inteligência e de amor. Faltam-me os verbos
na demanda do mundo sensível e atroz ao mesmo tempo

Hoje queria dizer-te o quanto te amo, mas duvido que
seja assim tão simples de escrever num papel rasurado
pelos dias inquietos a palavra aérea da fantasia.

Ontem queria explicar-te ao pormenor a ciência dos
corpos e dos mares profundos. Na mais abissal das
entranhas do sentimento. Mas a lua escolheu-te
para navegares nas crateras da felicidade.

Amanhã será tarde de mais, porque morri de vergonha
pelas palavras ditas. Escancarei a boca para o teu coração
e fiquei parado no sinal vermelho do teu afecto

Amanhã é sempre longe e eu tão perto de vestir o hábito
do monstro que me ensina a quanto menos se disser, melhor
E assim, cravo espinhos nas minhas encrespadas mãos
pecadoras pelo ofício de te querer. E socorro-me em
última instância de um trago amargo que me consome
as lágrimas no paraíso dos amantes etéreos

Por agora, o beneplácito leviano do astro-rei, que
me faz desejar um sorriso numa noite estranha
Já me despi de toda a sujidade dos homens

É tempo de recomeçar na orla do idílico momento:
Futuro feito de presente carregado de passado

domingo, 20 de março de 2011

Pub 2

Pub 1

"Formados por André Carapinha, Bruno Contreira, Ernesto Silva e Fábio Mateus, um ilustre quarteto de músicos barreirenses (Frango, Funkaína, Los Santeros, Nicotine's Orchestra, Fast Eddie & The Riverside Monkeys ou POW!), os Chickenálise têm vindo a impressionar com um registo em que predomina um rock carregado de dramatismo, a lembrar os Swans ou os melhores tempos dos Bad Seeds, não deixando de revelar influências do psicadelismo ou da chanson française. Deste improvável caldeirão surge uma das mais interessantes propostas musicais desse centro criativo que é o Barreiro, pronto a revelar-se a Portugal e ao Mundo" 
Luiz Inácio Monteiro, Março de 2011
Myspace

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

quarta-feira, 16 de março de 2011

A revolução que os media não mostram

"Por incrível que possa parecer, uma verdadeira revolução democrática e anticapitalista ocorre na Islândia neste preciso momento e ninguém fala dela, nenhum meio de comunicação dá a informação, quase não se vislumbrará um vestígio no Google: numa palavra, completo escamoteamento. Contudo, a natureza dos acontecimentos em curso na Islândia é espantosa: um povo que corre com a direita do poder sitiando pacificamente o palácio presidencial, uma "esquerda" liberal de substituição igualmente dispensada de "responsabilidades" porque se propunha pôr em prática a mesma política que a direita, um referendo imposto pelo Povo para determinar se se devia reembolsar ou não os bancos capitalistas que, pela sua irresponsabilidade, mergulharam o país na crise, uma vitória de 93% que impôs o não reembolso dos bancos, uma nacionalização dos bancos e, cereja em cima do bolo deste processo a vários títulos "revolucionário": a eleição de uma assembleia constituinte a 27 de Novembro de 2010, incumbida de redigir as novas leis fundamentais que traduzirão doravante a cólera popular contra o capitalismo e as aspirações do povo por outra sociedade.

Quando retumba na Europa inteira a cólera dos povos sufocados pelo garrote capitalista, a actualidade desvenda-nos outro possível, uma história em andamento susceptível de quebrar muitas certezas e sobretudo de dar às lutas que inflamam a Europa uma perspectiva: a reconquista democrática e popular do poder, ao serviço da população."



"Desde Sábado, 27 de Novembro, a Islândia dispõe de uma Assembleia constituinte composta por 25 simples cidadãos eleitos pelos seus pares. É seu objectivo reescrever inteiramente a constituição de 1944, tirando nomeadamente as lições da crise financeira que, em 2008, atingiu em cheio o país. Desde esta crise, de que está longe de se recompor, a Islândia conheceu um certo número de mudanças espectaculares, a começar pela nacionalização dos três principais bancos, seguida pela demissão do governo de direita sob a pressão popular.

As eleições legislativas de 2009 levaram ao poder uma coligação de esquerda formada pela Aliança (agrupamento de partidos constituído por social-democratas, feministas e ex-comunistas) e pelo Movimento dos Verdes de esquerda. Foi uma estreia para a Islândia, bem como a nomeação de uma mulher, Johanna Sigurdardottir, para o lugar de Primeiro-Ministro."

sexta-feira, 11 de março de 2011

Sobre a Líbia

O Miguel Serras Pereira é um blogger que geralmente aprecio, mas por vezes, como neste caso, cai em posições de uma ingenuidade gritante. Ele que não se preocupe, que a seu tempo verá a intervenção militar estrangeira que deseja na Líbia. Exactamente no momento em que se torne evidente que a revolução líbia não tem hipóteses de vencer Kadhaffi sem ajudas exteriores. É por esse motivo que os países ocidentais exageram na retórica e recuam nas acções concretas para o apoio à revolução, daquelas que seriam um verdadeiro auxílio sem invasão, como o bloqueio aéreo ou naval, ou mesmo a destruição da força aérea de Kadhaffi. Está na cara de quem quiser ver qual a sua estratégia: deixar a revolução em banho-maria, de modo a que não tenha qualquer hipótese de sucesso sem ter de apelar a uma intervenção das grandes potências; e assim, matar todos os coelhos de uma cajadada só: estando do lado justo, e por apelo dos próprios, acabar com as veleidades de autonomia do processo revolucionário líbio, e entrar em força no país, em troca dos contratos e das concessões certas. E ainda com todos os ingénuos por cá a aplaudir de pé.

quarta-feira, 9 de março de 2011

O 12 de Março, feito por todos


Este excelente tema do Chullage tem sido reaproveitado, como outros, para bandeira do movimento que se vai manifestar a 12 de Março. Outros tem produzido videos, temas musicais, organizado flashmobs, simplesmente divulgando e discutindo, no seus facebooks, blogues, em casa, preparando acções, tudo de forma espontânea e descentralizada, a partir de um simples manifesto inicial. À atenção das gentes dos partidos de esquerda: não é por acaso que tanta gente tem feito tanta coisa para esta manifestação. Sente-se aqui algo de novo, e há um perfume de genuína revolta popular no ar. Aqueles que tentarem cavalgar isto, serão desmascarados como os saudosistas das vanguardas que são. Os que genuinamente se manifestam não lhes perdoarão. O tempo agora é de ir para a rua, e exprimir a revolta que sentimos contra todos aqueles que são responsáveis por, mais uma vez, adiar a nossa vida. Muito caro pagarão todos os que aparecerem, neste momento, como intrusos aproveitando uma boleia alheia. Espero sinceramente que os partidos de esquerda percebam isto.

terça-feira, 8 de março de 2011

A manifestação de 12 de Março e o PCP (2)

Esta decisão do PCP em participar na manifestação também me fez matutar sobre a atitude que esse partido teve quando da recente manifestação anti-NATO. Nessa altura foi ver os comunistas a distinguir entre a "sua" manifestação e a "dos outros": "nada temos contra fazerem manifestações, mas façam-nas noutro sitio, não parasitem a nossa manifestação". Era muito engraçado ver este raciocínio agora aplicado à manifestação de 12 de Março.

A manifestação de 12 de Março e o PCP

O PCP anunciou que "estará presente" na manifestação de 12 de Março. Há amigos que nos fazem pior do que os inimigos, e apoios que certamente se dispensariam. Não se trata do "direito" de o PCP se fazer representar, de se solidarizar ou até apoiar; a questão é outra. Partindo do princípio que o PCP está de facto ao lado da manifestação, e pretende que esta seja um êxito (vamos acreditar nisso), então esta declaração é um tiro no pé (e vamos acreditar que não é uma facada nas costas). A pior coisa que pode acontecer a esta manifestação é ver-se submergida num mar de bandeiras vermelhas. Primeiro, porque isso desmobilizará uma parte dos seus aderentes, menos politizados, mas igualmente com razões para a revolta (e isso já começou a acontecer com este anúncio). Segundo, porque isso desvalorizará o impacto da manifestação, que reside na sua originalidade, tanto pela forma como foi convocada, à revelia dos partidos, como pelo conteúdo do seu manifesto, que é suficientemente abrangente de uma forma que só um grupo apartidário é capaz de produzir. Lá veríamos os comentadores de serviço a reduzir esta manifestação a "mais uma" de inspiração PC, com os resultados que tem tido todas as anteriores (e Miguel Sousa Tavares já sentenciou: se for muita gente à manifestação, é porque o PC está por trás). Esta gente esfregará as mãos se conseguir colar este movimento ao PCP, e assim esvaziar aquilo que tem de fundamentalmente diferente e original. Irão os comunistas fazer-lhes a vontade? É que isso acabaria por dar razão aos que consideram que o que o PCP pretende é não deixar os movimentos escapar-lhe do controlo, mais que o sucesso desses mesmos movimentos. Comunistas, e já agora outros que sofrerão do mesmo mal, mostrem-me que estou enganado. Compareçam em massa à manifestação, mas despidos dos símbolos partidários, compareçam como cidadãos que apoiam uma causa e não como membros de organizações que a parasitem. Ajudem ao sucesso deste movimento.

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

domingo, 6 de março de 2011

Homens da Luta vencem e dão Festival.

Pois é camaradas da luta, o povo votou e quis! Homens da luta vencem o Festival da Canção e vão representar-nos em Dusseldorf, Alemanha! E dia 12 de Março vão estar na Avenida da Liberdade a dar um concerto à borla e a lutarem connosco! "A luta é Alegria" é o título da canção. Lembrei-me logo do Almada Negreiros que disse: "A alegria é a coisa mais séria da vida". Eis aqui o vídeo da actuação.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A moção de censura

Via O País do Burro, eis o texto da moção de censura que o Bloco de Esquerda irá apresentar:

MOÇÃO DE CENSURA N.º 2/XI
MOÇÃO DE CENSURA AO XVIII GOVERNO CONSTITUCIONAL
EM DEFESA DAS GERAÇÕES SACRIFICADAS
Ao longo do ano e meio do seu mandato, o XVIIIº Governo adoptou uma política económica e social que tem atingido essencialmente os trabalhadores sem emprego e os jovens da geração mais preparada que o país já formou, que são marginalizados das suas competências para se afundarem num trabalho sem futuro. Existe hoje mais de um milhão de trabalhadores em situação totalmente precária, incluindo uma parte significativa sendo paga a troco de falso recibo verde, e promessas do Programa de Governo, como o fim dos recibos verdes no Estado, foram clamorosamente violadas. Ora, uma economia de exploração de salários mínimos é um cemitério de talentos e uma democracia amputada das melhores qualificações.
Esta Moção de Censura recusa por isso o gigantesco embuste da distribuição equilibrada dos sacrifícios e sublinha que o emprego e o salário têm sido destruídos pela cruel insensibilidade social que corrói a economia em nome da ganância financeira, e propõe uma ruptura democrática que evite a destruição implacável dos trabalhadores mais velhos pelo desemprego e dos mais novos no altar da precarização.
De facto, ao reduzir o apoio aos desempregados, o Governo deu um passo na sua estratégia agressiva quanto ao mercado de trabalho. O subsídio de desemprego passou a ser apresentado como um custo e não como um direito que decorre do próprio desconto do trabalhador, como um prejuízo e não como um acto de justiça. Agora, o Governo vai mais longe, procurando impor a redução da indemnização pelo despedimento, para o embaratecer e facilitar.
Deste modo, durante o seu mandato, apesar de ter perdido a sua maioria absoluta, o governo ignorou os sinais dos eleitores. Promoveu o agravamento da crise social com o aumento dos impostos, a queda do investimento público, a redução de salários, a degradação dos apoios sociais com a retirada do abono de família e de outras prestações a centenas de milhares de famílias, o aumento dos preços de medicamentos e outros bens essenciais e o congelamento das pensões.
Esta orientação conduz o país para o abismo da recessão. Agrava as dificuldades da economia em vez de lhes responder. Condena uma parte da população ao desemprego estrutural permanente, em números que a democracia portuguesa jamais conheceu. Reduz os rendimentos de trabalhadores e pensionistas. Esta política condena o país ao império do abuso.
A chantagem dos mercados financeiros, incluindo da finança portuguesa, que impõem juros em redor dos 7% ao refinanciamento a dez anos da dívida soberana, aprofunda as dificuldades da economia. Mas o governo respondeu a esta pressão favorecendo a finança ao agravar a transferência dos salários e dos impostos para os juros e, ainda, permitindo que os grandes bancos privados não paguem o IRC de lei. Esta situação é portanto insuportável. O país está endividado e a política orçamental precipita maiores custos de endividamento e restrições ao investimento, à produção e ao emprego.
Ora, um factor suplementar que agrava a crise actual é a forma como o governo tem desprezado os grandes combates democráticos pela qualidade dos serviços públicos do Estado Social, pela economia do emprego e contra a agiotagem financeira. Esta insensibilidade social é a causa da falta de confiança numa governação desgastada, que foge à responsabilidade, cultiva o favorecimento e provoca o apodrecimento da decisão política.
Exige-se por isso um novo caminho, com uma viragem da política económica para o combate à recessão. Exige-se a solução do défice fiscal para corrigir o défice orçamental, a solução do investimento criador de emprego e promotor de exportações e de substituição de importações, a solução da recuperação da agricultura para promover a soberania alimentar, a recuperação da procura interna com a defesa dos salários, a valorização das pensões e o combate à precariedade em nome da vida das pessoas.
O Governo, apesar de ter sido suportado por uma grande maioria parlamentar nas mais importantes decisões económicas, não responde às grandes prioridades nacionais, que são o combate ao desemprego, pobreza e precariedade, antes agrava as condições do trabalho para facilitar os despedimentos e portanto os salários baixos, seguindo a orientação do FMI que recomenda a desprotecção dos rendimentos e dos contratos dos trabalhadores. Esta resposta agrava as desigualdades na sociedade portuguesa e é por isso imperativo, em nome de uma política que se comprometa com a defesa das gerações sacrificadas, derrotar as medidas que promovem o desemprego e a precariedade e convocar a democracia para que decida as soluções para o país. Assim,
A Assembleia da República, ao abrigo do artigo 194º da Constituição da República Portuguesa, delibera censurar o XVIII Governo Constitucional.
As Deputadas e os Deputados do Bloco de Esquerda

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sobre a exposição do João de Azevedo (3)

ALGUMA APRESENTAÇÃO, DOS CROCOS E MINHA
« Ce que je constate : ce sont les ravages actuels ; c'est la disparition effrayante des espèces vivantes, qu'elles soient végétales ou animales ; et le fait que du fait même de sa densité actuelle, l'espèce humaine vit sous une sorte de régime d'empoisonnement interne - si je puis dire - et je pense au présent et au monde dans lequel je suis en train de finir mon existence. Ce n'est pas un monde que j'aime. » Levy Strauss, 2005.
Estes crocodilos são uma consequência da minha estadia em Timor-Leste durante dois anos, desde Fevereiro 2005. As pinturas são feitas com tintas acrílicas, a sua maior parte sobre papel Fabriano de algodão 600- 850 gr.
A capa do disco do Zeca Afonso "Com as minhas Tamanquinhas" é o meu cartão de visita mais antigo, feita no Verão de 1975. Nascido em 1950, tinha então 25 anos. Foi por essa altura que parei com a pintura, quando vim de Itália para Portugal, onde passei a fazer outras coisas. Porém, em Itália, fui pintor activo, entre 1972 e 1975. Fiz duas exposições individuais e participei em várias colectivas (em Itália e fora). Parei então de pintar porque nessa altura me parecia desajustado fazer coisas para pessoas com dinheiro comprarem. Tive quase vergonha, hesitação, pouca autoconfiança. Queria mudar de vida, mas não sabia bem para que vida mudar. Deixei-me ir, durante muitos anos, sempre acompanhado pelos pincéis, que ficavam numa caixa fechada.
Desde então tenho participado, desde 1977, em actividades do (por vezes mau) desenvolvimento. Entre elas: quase 10 anos nas Nações Unidas, no Níger e, desde 2001 como consultor independente, em África e Ásia.
O recente regresso às pinturas deve-se, em primeiro lugar, à vontade de fazer trabalho manual. Fazer trabalhar as duas partes do cérebro, como alguns dizem. Passar por cima do determinismo que nos impele a manifestar apenas uma pequena parte dos nossos talentos, usar apenas uma parte do nosso corpo, a escolher ou a cabeça ou as mãos, ou outra parte qualquer. Sei que pintar me dá muito gozo; que o trabalho manual voltou a ter peso, que é mesmo necessário. Penso que para o futuro é preciso fazer um trabalho mais integrado, mais holístico. O pouco que sabemos sobre nós próprios aponta para essa necessidade: reintegrar as nossas forças, os nossos lados emocionais, os nossos lados espirituais, o nosso interesse pelo ambiente. É hoje difícil para mim imaginar que alguém se possa desenvolver sem nada acrescentar à qualidade de vida dos outros. Este é o tipo de coisa para a qual é difícil imaginar como falar delas (cito, indirectamente, Boyatzis).
Timor e as minhas citações dos crocodilos. Com os significados profundos dos crocodilos fui aprendendo na prática – e não só nos livros – que as sociedades primitivas não tinham os homens no centro do universo (desnecessário citar Lévi Strauss). A natureza e os outros seres vivos foram desvalorizados, “arrancando-lhes o homem para o colocar num lugar de eleição”, o que na altura foi considerado, no mundo ocidental, como uma conquista do Iluminismo. Esse desprezo pelo ambiente virá daí. Com Timor, com a minha vivência com aquelas pessoas, esta convicção “ganhou-me” para o lado dos crocodilos.
Estes animais têm ali uma ambiguidade significante, com alta densidade histórica. As lendas (isto é, a forma como se diz e se acredita na história) são povoadas pelos crocodilos. Apesar de algumas tentativas de normalização, eles continuam presentes no imaginário como parceiros dos sonhos e da vida real. Nessas narrativas tomam várias cores, segundo as zonas, as ocasiões, as intenções, as testemunhas. As mulheres de certos povos mauberes não são mulheres senão à vista, porque mal voltam as costas, são crocodilos. Um rei de um outro povo deu a filha mais velha ao crocodilo, para ganhar a guerra. Outro rei, de outro povo ainda, fez um acordo com os crocodilos para deixar passar os seus soldados, a fim de surpreender o inimigo invasor pela retaguarda.
Os crocodilos não atacam se estás tranquilo, se tens a “consciência em paz”. O desembarque dos Indonésios, em 1975, foi largamente anunciado por muitos crocodilos que apareceram na baía de Dili. A reparar bem, a própria ilha de Timor tem a forma de um crocodilo.
Há sempre uma narrativa segundo a qual “na semana passada” os crocodilos vieram e levaram 4, 5 ou 6 pessoas. Esses animais são a parte escondida e mágica do espírito timorense. Têm do bom e do mau. Eu cito essas histórias não para as ilustrar, mas porque procuro essa percepção, a humanidade nesses animais.
Acrescento que o crocodilo em Timor, tal como entre os aborígenes australianos (os últimos aristocratas, segundo Levy Strauss), e que eu consegui visitar, é um animal sagrado (lulik), sendo considerado pelos timorenses como antepassado. Daí o nome de avô, bei-nai. É o senhor das águas, o we-nai. Segundo o mito de origem, é considerado o responsável pelo povoamento de Timor.
Esses animais são geralmente muito respeitados, são rápidos e poderosos. Podem, de facto, atacar e comer pessoas. Toda a região está infestada. Na costa norte da Austrália é absolutamente proibido tomar banho nas praias, de Novembro a Abril. Eles pululam na baía de Darwin, por exemplo. São os saltwater crocodiles (Crocodylus porosus), que atingem facilmente 4 metros (às vezes mais) de comprimento, são ultrarápidos no ataque e vivem entre a água doce e a salgada. Existem desde há talvez 200 milhões de anos, são dos mais velhos sobreviventes, hoje espécies protegidas.
No meu caso, e com eles, voltando aos pincéis depois de tantos anos, jogo com as cores, para espantar e seduzir os parceiros e os públicos. Crocodilos homens e mulheres, e vice-versa, homens e mulheres crocodilos. Acasalamentos, pesadelos, combates; não ilustro nada, são citações de ocasiões que poderiam ter acontecido. Em Dili fui obtendo algum feed back. Uns velhos disseram-me: “Até parece que o senhor João estava lá!”.
Texto e foto de João de Azevedo