segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sobre a exposição do João de Azevedo (3)

ALGUMA APRESENTAÇÃO, DOS CROCOS E MINHA
« Ce que je constate : ce sont les ravages actuels ; c'est la disparition effrayante des espèces vivantes, qu'elles soient végétales ou animales ; et le fait que du fait même de sa densité actuelle, l'espèce humaine vit sous une sorte de régime d'empoisonnement interne - si je puis dire - et je pense au présent et au monde dans lequel je suis en train de finir mon existence. Ce n'est pas un monde que j'aime. » Levy Strauss, 2005.
Estes crocodilos são uma consequência da minha estadia em Timor-Leste durante dois anos, desde Fevereiro 2005. As pinturas são feitas com tintas acrílicas, a sua maior parte sobre papel Fabriano de algodão 600- 850 gr.
A capa do disco do Zeca Afonso "Com as minhas Tamanquinhas" é o meu cartão de visita mais antigo, feita no Verão de 1975. Nascido em 1950, tinha então 25 anos. Foi por essa altura que parei com a pintura, quando vim de Itália para Portugal, onde passei a fazer outras coisas. Porém, em Itália, fui pintor activo, entre 1972 e 1975. Fiz duas exposições individuais e participei em várias colectivas (em Itália e fora). Parei então de pintar porque nessa altura me parecia desajustado fazer coisas para pessoas com dinheiro comprarem. Tive quase vergonha, hesitação, pouca autoconfiança. Queria mudar de vida, mas não sabia bem para que vida mudar. Deixei-me ir, durante muitos anos, sempre acompanhado pelos pincéis, que ficavam numa caixa fechada.
Desde então tenho participado, desde 1977, em actividades do (por vezes mau) desenvolvimento. Entre elas: quase 10 anos nas Nações Unidas, no Níger e, desde 2001 como consultor independente, em África e Ásia.
O recente regresso às pinturas deve-se, em primeiro lugar, à vontade de fazer trabalho manual. Fazer trabalhar as duas partes do cérebro, como alguns dizem. Passar por cima do determinismo que nos impele a manifestar apenas uma pequena parte dos nossos talentos, usar apenas uma parte do nosso corpo, a escolher ou a cabeça ou as mãos, ou outra parte qualquer. Sei que pintar me dá muito gozo; que o trabalho manual voltou a ter peso, que é mesmo necessário. Penso que para o futuro é preciso fazer um trabalho mais integrado, mais holístico. O pouco que sabemos sobre nós próprios aponta para essa necessidade: reintegrar as nossas forças, os nossos lados emocionais, os nossos lados espirituais, o nosso interesse pelo ambiente. É hoje difícil para mim imaginar que alguém se possa desenvolver sem nada acrescentar à qualidade de vida dos outros. Este é o tipo de coisa para a qual é difícil imaginar como falar delas (cito, indirectamente, Boyatzis).
Timor e as minhas citações dos crocodilos. Com os significados profundos dos crocodilos fui aprendendo na prática – e não só nos livros – que as sociedades primitivas não tinham os homens no centro do universo (desnecessário citar Lévi Strauss). A natureza e os outros seres vivos foram desvalorizados, “arrancando-lhes o homem para o colocar num lugar de eleição”, o que na altura foi considerado, no mundo ocidental, como uma conquista do Iluminismo. Esse desprezo pelo ambiente virá daí. Com Timor, com a minha vivência com aquelas pessoas, esta convicção “ganhou-me” para o lado dos crocodilos.
Estes animais têm ali uma ambiguidade significante, com alta densidade histórica. As lendas (isto é, a forma como se diz e se acredita na história) são povoadas pelos crocodilos. Apesar de algumas tentativas de normalização, eles continuam presentes no imaginário como parceiros dos sonhos e da vida real. Nessas narrativas tomam várias cores, segundo as zonas, as ocasiões, as intenções, as testemunhas. As mulheres de certos povos mauberes não são mulheres senão à vista, porque mal voltam as costas, são crocodilos. Um rei de um outro povo deu a filha mais velha ao crocodilo, para ganhar a guerra. Outro rei, de outro povo ainda, fez um acordo com os crocodilos para deixar passar os seus soldados, a fim de surpreender o inimigo invasor pela retaguarda.
Os crocodilos não atacam se estás tranquilo, se tens a “consciência em paz”. O desembarque dos Indonésios, em 1975, foi largamente anunciado por muitos crocodilos que apareceram na baía de Dili. A reparar bem, a própria ilha de Timor tem a forma de um crocodilo.
Há sempre uma narrativa segundo a qual “na semana passada” os crocodilos vieram e levaram 4, 5 ou 6 pessoas. Esses animais são a parte escondida e mágica do espírito timorense. Têm do bom e do mau. Eu cito essas histórias não para as ilustrar, mas porque procuro essa percepção, a humanidade nesses animais.
Acrescento que o crocodilo em Timor, tal como entre os aborígenes australianos (os últimos aristocratas, segundo Levy Strauss), e que eu consegui visitar, é um animal sagrado (lulik), sendo considerado pelos timorenses como antepassado. Daí o nome de avô, bei-nai. É o senhor das águas, o we-nai. Segundo o mito de origem, é considerado o responsável pelo povoamento de Timor.
Esses animais são geralmente muito respeitados, são rápidos e poderosos. Podem, de facto, atacar e comer pessoas. Toda a região está infestada. Na costa norte da Austrália é absolutamente proibido tomar banho nas praias, de Novembro a Abril. Eles pululam na baía de Darwin, por exemplo. São os saltwater crocodiles (Crocodylus porosus), que atingem facilmente 4 metros (às vezes mais) de comprimento, são ultrarápidos no ataque e vivem entre a água doce e a salgada. Existem desde há talvez 200 milhões de anos, são dos mais velhos sobreviventes, hoje espécies protegidas.
No meu caso, e com eles, voltando aos pincéis depois de tantos anos, jogo com as cores, para espantar e seduzir os parceiros e os públicos. Crocodilos homens e mulheres, e vice-versa, homens e mulheres crocodilos. Acasalamentos, pesadelos, combates; não ilustro nada, são citações de ocasiões que poderiam ter acontecido. Em Dili fui obtendo algum feed back. Uns velhos disseram-me: “Até parece que o senhor João estava lá!”.
Texto e foto de João de Azevedo

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Protesto da Geração À Rasca



Através do Facebook cheguei ao anúncio deste protesto, que, como se comprova pelo texto abaixo, parece muito diferente do habitual neste tipo de movimentações internéticas, o "são todos iguais, andam todos a roubar o zé-povinho" - pelo contrário, a uma análise bastante lúcida da situação parece corresponder um programa reivindicativo certeiro:

PROTESTO APARTIDÁRIO LAICO E PACÍFICO.
Nós, desempregados, “quinhentoseuristas” e outros mal remunerados, escravos disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes, trabalhadores intermitentes, estagiários, bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de Portugal. Protestamos:
- Pelo direito ao emprego! Pelo direito à educação!
- Pela melhoria das condições de trabalho e o fim da precariedade!
- Pelo reconhecimento das qualificações, competência e experiência, espelhado em salários e contratos dignos!

Porque não queremos ser todos obrigados a emigrar, arrastando o país para uma maior crise económica e social!

Manifesto

Nós, desempregados, “quinhentoseuristas” e outros mal remunerados, escravos disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes, trabalhadores intermitentes, estagiários, bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de Portugal.
Nós, que até agora compactuámos com esta condição, estamos aqui, hoje, para dar o nosso contributo no sentido de desencadear uma mudança qualitativa do país. Estamos aqui, hoje, porque não podemos continuar a aceitar a situação precária para a qual fomos arrastados. Estamos aqui, hoje, porque nos esforçamos diariamente para merecer um futuro digno, com estabilidade e segurança em todas as áreas da nossa vida.
Protestamos para que todos os responsáveis pela nossa actual situação de incerteza - políticos, empregadores e nós mesmos – actuem em conjunto para uma alteração rápida desta realidade, que se tornou insustentável.

Caso contrário:

a) Defrauda-se o presente, por não termos a oportunidade de concretizar o nosso potencial, bloqueando a melhoria das condições económicas e sociais do país. Desperdiçam-se as aspirações de toda uma geração, que não pode prosperar.
b) Insulta-se o passado, porque as gerações anteriores trabalharam pelo nosso acesso à educação, pela nossa segurança, pelos nossos direitos laborais e pela nossa liberdade. Desperdiçam-se décadas de esforço, investimento e dedicação.
c) Hipoteca-se o futuro, que se vislumbra sem educação de qualidade para todos e sem reformas justas para aqueles que trabalham toda a vida. Desperdiçam-se os recursos e competências que poderiam levar o país ao sucesso económico.

Somos a geração com o maior nível de formação na história do país. Por isso, não nos deixamos abater pelo cansaço, nem pela frustração, nem pela falta de perspectivas. Acreditamos que temos os recursos e as ferramentas para dar um futuro melhor a nós mesmos e a Portugal.
Não protestamos contra as outras gerações. Apenas não estamos, nem queremos estar à espera que os problemas se resolvam. Protestamos por uma solução e queremos ser parte dela.

http://geracaoenrascada.wordpress.com/

geracaoarasca@gmail.com

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A moção de censura e o Bloco de Esquerda

A decisão do Bloco de Esquerda em apresentar uma moção de censura ao governo Sócrates é discutível. É-o, sobretudo, porque se segue ao desastre que foi o apoio a Alegre nas presidenciais (o apoio nas condições em que foi feito, não o apoio em si), e porque aparece aos olhos de todos como uma tentativa do BE de se defender de ataques à sua esquerda, que repetidamente o acusam, algo infantilmente, acrescento, de colagem ao governo. Ora, o pior nesta moção pode muito bem ser esta aparência de "tacticismo" politiqueiro, que contrasta com o que a actuação do BE nos tem habituado. Para mais, não é segredo que os últimos tempos a definição sobre o caminho que o Bloco irá tomar tem originado divergências, primeiro do seu lado esquerdo (no apoio a Alegre), e agora da sua ala direita (vide Daniel Oliveira). E depois, como nota o Filipe Tourais, no BE há esse estranho hábito de, quando há divergências, as pessoas as assumirem em público, demitirem-se dos orgãos a que pertencem, etc, o que, é bom de ver, contrasta e de que maneira com os hábitos monolíticos e de rebanho dos restantes partidos parlamentares.
Mas o que me motiva a escrever este post é outra coisa: a propósito destes últimos acontecimentos, e, como acontece habitualmente quando se trata do Bloco, confundindo os seus desejos com a realidade, vieram os comentadores instalados anunciar o inicio de um "processo de definhamento" do BE, da sua "decadência", do "fim de um ciclo". Vasco Pulido Valente, com o mau gosto habitual, chega a chamar-nos, a nós, votantes do BE, de atrasados mentais (não vê como alguém com um QI maior que 50 possa votar em tal partido. A este respeito, uma boa resposta é esta do Zé Neves); e o inefável Rui Moreira, no Jornal da RTP2 de ontem, anunciava, de dentes arreganhados e a salivar da boca, o início do processo de "PRDização" do Bloco ("até envolve uma moção de censura e tudo"...), ignorando o evidente absurdo de comparar um partido efémero, originado por um projecto de poder unipessoal, e sem ideologia definida, com um partido-movimento de crescimento sustentado de eleição para eleição nos últimos 10 anos, e com um lugar perfeitamente definido no espectro ideológico, o que permite, evidentemente, a fixação do seu eleitorado de uma maneira que seria impossível a um partido como o PRD. Acrescentam as patranhas e os mitos sempre repetidos e sempre desmentidos de eleição para eleição, os de que o eleitorado do Bloco é "flutuante", "inconstante", "jovem",  quiçá querendo dizer que os eleitores do BE são um monte de freaks que fumam ganza e não sabem bem o que fazem, ou miúdos que saíram agora da escola, coitadinhos, ou os restos dos líricos de 74-75. Ou, com um ar mais grave e analítico, juram para quem os quiser ouvir que o partido "não tem bases", "não tem implantação" ou "tem poucos militantes", por mais que a realidade desminta qualquer uma destas mentiras. Estes comentadores, movidos pelo seu ódio ao BE, que sabem ser o grande factor de novidade da política portuguesa, e a grande ameaça ao status quo instalado da "alternância democrática", tomam, como disse, os seus desejos por realidades, porque tem medo do Bloco. Tem medo que o Bloco chegue ao poder e estrague o arranjinho politico-constitucional de 1975; tem medo que o Bloco provoque uma verdadeira inflexão do panorama político à esquerda, porque o Bloco, ao contrário do PCP, um partido instalado nos seus feudos, ambiciona crescer, quer o poder, quer alterar o status quo onde estes comentadores se sentem como peixes na água, já que o sistema os tem tratado bem nos últimos 30 anos.
O que conforta é saber como estes vampiros se enganam. É que o Bloco de Esquerda, sabemo-lo bem, não é nenhum PRD. O lugar que ocupa corresponde ao posicionamento político de centenas de milhar de portugueses, que estão à esquerda do PS mas rejeitam os tiques autoritários, anti-democráticos, burocráticos e controleiros do PCP. É a esquerda democrática em Portugal: verdadeiramente esquerda, e verdadeiramente democrática. Quer trabalhar também em formas outras de modificar as relações sociais e económicas, e aprofundar a democracia, a participação e a cidadania, rejeitar e revolucionar o modo de vida capitalista, mas sabe que é essencial que este projecto político-social esteja representado no parlamento de uma maneira forte, e não rejeite chegar ao poder por via eleitoral (porque não? Desde que não renegue os seus princípios, isso significaria uma mudança evidente nas relações de poder neste país). Houve erros estratégicos nos últimos tempos, sim, e devem ser discutidos, com certeza, e se calhar pela primeira vez o Bloco vai perder votos nas legislativas, pois é bem possível. São dores de crescimento. Mas aqueles que sonham com a implosão do BE, sonham acordados, e se confundem de modo tão espúrio os seus desejos com a realidade, então para que servirão esses analistas? Mais uma vez a realidade, na forma de eleições, irá desmentir os sonhos húmidos destas luminárias, e acordá-los para a dura verdade: o Bloco de Esquerda veio para ficar, é melhor contarem com ele.

P.S: Alguns amigos, de que o efémero colaborador deste blogue Luís Palácios é exemplo, sabem que eu costumava dizer que ponderaria juntar-me ao Bloco no dia em que as coisas começassem a correr mal pela primeira vez. Talvez seja este o momento.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Sobre a exposição do João de Azevedo (2)


Fotos de Ivone Ralha



Novas peregrinações

A globalização trouxe outros mundos ao mundo, desde sempre. Aumentando-o, gizando-o em novas direcções, abrindo novos planos, também e sobretudo imaginários, que antes lá não havia. E de cada vez a seu modo assim se fez e faz e tornará a fazer até que o tempo coincida absolutamente com o espaço.
Agora, que a globalização já não se faz com naus nem caravelas, mas com computadores e bolsas on-line capazes de alimentar a cobiça (madre-eterna) daqueles mais ansiosos do vão poder do mundo, e com as notícias em directo da TV, a outra peregrinação global, a do espírito, essa faz-se também ela de outro modo: onde antes, meio milênio atrás, o Fernão Mendes Pinto de gloriosa memória elocubrava as aventuras de uma descoberta maravilhada desse cruzamento incerto entre mito e história, hoje outros entendem, desentendem, sobre-entendem, numa epifania breve, as janelas que se abrem de repente sobre os planos mais incertos e caóticos do tempo, e o desdobram, mostrando-o em outras dobras, em outras convulsões, em outras configurações.
Assim João de Azevedo.
Longamente hipotecado a uma paixão aventureira que o levou aos trópicos, de Moçambique ao Niger e a Timor passando por tantos outros lugares, João trouxe, porque levava para tanto a intuição, notícia de outros mundos haver, para além da racionalidade estreita deste nosso em perpétuas crises, outros lugares onde o trágico coabita com o vulgar e o ordinário, paredes meias com o sonho, fazendo e desfazendo entre este e a chamada realidade. Uma realidade menos óbvia do que a nossa, já se vê. Onde os animais ainda e sempre falam.
E se nessas aventuras chegou a colaborar de perto, apaixonadamente, com o renascimento de nações, ou captar o essencial desse registo gráfico, quase diagramático, de uma visão outra do mundo, que depois igualmente sabe traduzir em longas e sábias conversas noite fora, em que descreve os mitos como se os houvera assistido desde o seu nascimento, é nos seus quadro de longa e paciente factura que mais os elabora, re-elabora, tornando-os pouco a pouco seus e nossos, através do seu sábio e sempre inocente olhar.
Já se vê que o crocodilo é um poderoso símbolo erótico. E que, como a todo símbolo, o melhor é não o afectar a uma única coisa, já que de muitas fala, e ao mesmo tempo. E já se vê que ele caminha veloz nestas pinturas, onde também a cor transporta a alegria das descobertas mais vastas do espaço e do tempo. Mas, humaníssimo, e não só por ser portador desses impulsos vitais, também ele o temível crocodilo é retrato e auto-retrato, mágico instrumento de uma soberana re-interpretação do mundo, deste e do outro, mensageiro subtil que se desloca entre os dois.
Os crocodilos de João de Azevedo, as suas ninfas, as suas cores quase puras, são outros tantos sinais cantantes de haver sempre mais mundos e contadores de histórias desses mundos, hoje como antes, há muito tempo atrás na peregrinação do outro. Porque perpétuo é o homem no seu sonho como na sua imperfeição.
São artes destas que tornam o mundo maior. E que no-lo trazem, paradoxalmente, até junto à porta.
Obrigado João.

Bernardo Pinto de Almeida
Janeiro 2011

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cadáver Ex-Quis Isto

Surripiaste um beijo na despedida
- Não se faz, disse eu com fervor

Isto dos enganos e das esperas
não é para mim. Não te quero
ver mais. Desaparece na Calçada
do Escombro. Rola por aí abaixo
e chora o tempo todo de um
declive ensimesmado. Cuida
de ti, aprende a ser mais
calma e fria. Fazia-te bem
um pouco mais de ego

E assim, vou rir-me de ti
Mais uma aventura para
contar aos meus botões
Sou forte e selvagem
Vou para onde quero
Não sei o que me falta

Não me falta mesmo nada,
estou convicto disso. Ficas
avisada de que mais vale
um carinho na mão do
que dois beijos a voar

Talvez ainda pela Calçada
Vais ranhosa e sem postura
Mas o que importa é que
aprendeste a lição do mestre
que fez uma obra-prima

A prima do mestre-de-obras
essa, tornou-se prostiputa
ganhava bom dinheiro em
bares alternativos. Pelo menos
a vulgaridade não fornicava
com ela. Mas a alta sim.

Já na baixa, os edifícios
ficam a cair de podres,
porque por este país à
beira falência plantado
não se gosta do passado.
E ter memória é só para
os elefantes. Já me
chamaram de camelo
por pensar. Mas penso
que o centro deveria
ter mais gente. De
preferência pensante.

Este é um cadáver esquisito. Não sei quem o deixou fenecer aqui na minha fenêtre. E como fica bem em Portugal um poema horizontal com paroles em Francês e o resto o bom do inventês, essa língua-procariota, criada por um idiota. Mas entre a rima e o enclave, prefiro o riso que uma bola à trave. Se ainda fosse num poste de alta-tesão. Mas agora é cedo para agoirar os sorrisos do presente. Faça-se à estrada e calcorreie os resquícios do Macadame, em pedra lioz e abrasiva. Se não estava no dicionário, é porque está de acordo com a Hortografia dos nabos e da couve-flor, embora prefira a couve-tronchuda, pois sabe-me melhor no ouvido. Das falácias do infinito, trasfego a deuteronímica visão do mundo em pentateucos sem fim. Compro cigarros ao desafio, só pelo prazer de poder perder e deixar-te viciado na Nico Atina. Afina agora o diapasão do mundo, e só escrevo isto porque soa bem, como uma onda forte que rebenta sobre a praia, essa diáspora do infinito. Se tu gostasses de palavras como eu, comeria-las a todas as horas do porvir. Desde o pequeno-grande-almoço do desejo até à ceia dos pontos cardeais, esses geoabraços em coordenadas sem fim, sem fim, sem fim. Tudo o resto são ordinarices dos números. Entre os cardinais e os ordinais, prefiro a cardina, essa bebedeira sem fim da lama e do que mais suão e puro existe. Nascemos do sangue e da imundície. Para quê lavarmos a face da nossa pequenez?
Não passa de puro dislate essa máscara da personalidade que queremos à força colocar no rosto da ingenuidade. E assim vamos, educados pela conspurcada e vil sociedade esquisita, tal como este cadáver que aqui jaz e apodrece na sevícia do amor. Na demanda de novos infernos, a soez e torpe indiferença do céu, é aspergida pela chuva dos ditirâmbicos seres da tautologia destas palavras. Pode ser uma redundância minha, mas adoro os pleonasmos que se repetem ad nauseum. Além do Francês, também fala Latim, dizia o cão no seu latir habitual, ou seja, no pleonasmo habitual. De tanta habituação, o cão ficou viciado nas palavras cruzadas das pernas da sua dona. Tantas cruzes e abraços, que mais parecia que estava na romaria da Páscoa. Vou-me folar daqui antes que fique fulo de todo. Bem dizia o meu pai, que trabalhava na fábrica de óleo Fula, que quem se deita tarde, sofre muito. Não sei de quê, talvez de pouco sono. Mas isso, nada como um bom sonho para compensar as horas fúteis de sono. Basta tirar uma letra e já está! Tudo se resolve neste meu país do sul, onde não acontece nada. Pode ser que a morte tenha sido ao Meio-Dia, a deste cadáver adiado e maltrapilho. Talvez seja tempo de o cremar na pira de incenso e mirra. Os louros fica para quem os quiser. Eu sempre preferi as morenas, as de pele branca, as matarruanas, as atarracadas, as tresloucadas. Quanto a issos, não se podem fazer nadas! Grandes rabecadas vou eu levar quando finalmente lerem isto, os dois ou três visionários do tremoço, já que o cajú está caro, é muito calórico e eu sempre detestei gordos. Por isso nunca seria um bom nutricionista. Fiz-me ao deserto e encontrei um oásis. No palco, encontrei a redenção para os meus pecados. Posso agora, finalmente fenecer em paz. Sou o cadáver mais esquisito e feliz de mim mesmo, na maresia de um encanto que ainda estou por deslindar. Descubro-te ou não, mas cubro-te e encubro-te na sageza de um abraço fugaz e tão sentido.
Pena que os ponteiros do relógio nunca estejam em sentido único. Há sempre vias transversais para fazer obviar o sentimento. Para quando uma festa dos sentidos, uma catarse de sonho, um poema verdadeiro, uma prosa pensada em livros sem fim? Tudo isto, isto, isto que aqui escreves e lês, são demenciais discursos fúnebres para o triste fim da humanidade que pensa. Por isso, inscreves na metonímia um lastro de insensatez e estupidificante langor intelectual. Volto à fórmula inicial, em que H2So4 é o ácido súlfurico que um dia te corroeu a garganta com verborreica fatalidade. Só o Gedeão é que percebia destas coisas da química dos fluidos e das matérias. É tão bonita a ciência a brincar com a arte. São seres fecundos e belos, que instigam sempre a um porvir mais talentoso. Já brinquei e amei com ambas, às mil revoluções por minuto na esfera celeste do teu beijo. Ah! E foi por isso que cá vim, pelo teu beijo, por mim recusado.
Hoje sim, consegui finalmente ser um grande escritor, escrever muito, repetir muito, acrescentar às palavras esses espaços que as tornam tão belas. Tal como a pausa, na música e no teatro, esses silêncios que dão dimensão ao uni verso. Um verso apenas para perderes a cabeça. Foi pelo beijo que me perdi e reencontrei nas faldas do teu rosto. E chego à conclusão que este cadáver está bem melhor agora para ti, para receber finalmente esse teu beijo em surdina acidental.

Quis receber esse teu beijo
Deste-me uma bofetada
por tanta insensatez
e tempo de espera,
nas deambulações
horizontais da
inconsequente
vida dos sonhos.

Hoje pensei tanto
em ti
que derrapei neste
caudaloso leito
com margens
bem fortes e
cruéis. Falo de ti,
poeta. Aquele
grande Rio Eufrates,
aquela Margem da
Alegria. São coisas
tuas e minhas.
Que partilhaste
em densos nevoeiros,
por causa da Serra
onde vivias.

E por agora chega!
Amo e sonho na tua boca pintada.

Surripio-te um beijo na alvorada
-Não se faz! disseste tu com amor.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Jornadas Anticapitalistas

"Num momento em que o capitalismo se revela como crise e esta serve de pretexto à dissolução das últimas garantias do Estado social, numa altura em que dinheiros públicos pagam a bancarrota de bancos e seguradoras perdidos nas aventuras dos mercados,  em que o capital desbasta recursos naturais em prol do benefício de muito poucos,  em que a democracia procura sobreviver à crescente perda de legitimidade representada pela corrupção no seio do poder político ou  pelas elevadas taxas de abstenção nos actos eleitorais, num contexto de generalização do uso de dispositivos de segurança, controlo e mercadorização da palavra e do corpo, nós, como outros em todo o mundo, escolhemos organizar-nos.
Ocupamos um espaço fora da política institucional. Não pretendemos representar ninguém, nem nos orientamos por uma lógica programática. Não nos junta uma direcção, mas uma afinidade que se encontra mais numa rejeição óbvia do capitalismo do que em eventuais proximidades ideológicas. Entregamos em exclusivo a uma assembleia, horizontal, aberta e informal, todos os momentos de decisão. Uma assembleia em que todos podem a todo o tempo tudo decidir.
As Jornadas anticapitalistas são a proposta que apresentamos. O seu programa permanece e permanecerá sempre em aberto e outras acções, que com ela se identifiquem ou solidarizem, poderão e deverão ter lugar. Este documento é, por isso, também um apelo à mobilização de todos os anticapitalistas e antiautoritários.
Propomos um conjunto de diferentes actividades e acções a decorrer no período de 1 a 8 de Março, que conte com acções de rua, debates, visionamento de filmes, jantares e festas, entre outros, que proponham saídas para este modo de vida e que critiquem de forma radical e directa o sistema capitalista. Estamos de acordo que não queremos esta ou qualquer outra economia capitalista e, nessa recusa, criamos um terreno comum, onde os contributos acompanham as diferentes sensibilidades num processo colectivo de discussão, decisão e acção."

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

Sobre a exposição do João de Azevedo (1)


Fotos de Ivone Ralha



João Croco

Esta  manhã encontrei umas cartas, religiosamente bem guardadas, do meu amigo João de Azevedo. Tinham sido enviadas de Roma, onde vivia nos anos 70. E, ao lê-las, senti-me, se não culpado, pelo menos irritado comigo mesmo. É que, no alegre caos em que nos deixávamos perder, não fui capaz de ver o seu desejo mais pungente. E, no entanto, quantas vezes nestas cartas não era exactamente essa a questão! Pintar, desenhar, era o que o fazia feliz. Mas nunca afirma poder dedicar-se exclusivamente a isso. Os ideais políticos da nossa juventude não o permitiam. No entanto o caminho estava aberto: galeristas e coleccionadores interessavam-se pelo seu trabalho, interesse que o João só tinha então em conta do ponto de vista da subsistência.

Exaspera-me tentar hoje conquistar tudo o que foi então adiado. Na verdade o conflito começa na adolescência. João quer entrar na faculdade de Belas-Artes de Lisboa contra a vontade do pai que prefere vê-lo a estudar engenharia naval. Não seguirá nenhum dos caminhos. Depois de um ano na Faculdade de Direito, foge aos dezoito anos da ditadura salazarista, pedindo asilo político na Bélgica onde começa uma nova história. A sua existência torna-se rica, generosa e inventiva. E chega agora a hora de, sem reservas, desfrutar dos pincéis desfrutando do seu talento em plenitude.

Foi ele mesmo quem compreendeu que essa hora chegara, e fico contente por isso. A reviravolta deu-se em Timor, onde passou dois anos de 2005 a 2007. Nesta ilha de forma estranhamente parecida com a de um crocodilo, apaixonou-se pelas lendas locais e pela relação intensa que os Timorenses mantêm com a figura do crocodilo. Resultou daí uma série de pinturas de cores explosivas onde o homem e o sáurio se cruzam como se fossem um centauro invertido.

Assim como em Picasso com o encontro do homem com o touro – pensando em particular nos quadros que dizem respeito ao Minotauro – o encontro do homem com o crocodilo de João de Azevedo tem uma natureza fortemente erótica. Inquietante, também: haverá figura mais evocativa da castração que o crocodilo? Perguntem ao capitão Hook que pensa ele disto.
Mas para os falantes a castração está no coração da economia do desejo. No seu seminário “A relação do objecto”, Jacques Lacan evoca o crocodilo para ilustrar a alegria maternal devoradora, e do falo faz um bastão que se posiciona entre os dois maxilares não deixando que se fechem. Não sei o que os timorenses pensariam desta analogia!

Em Moçambique onde o João trabalhou onze anos, um pintor conhecido tem o nome de Malangatana Ngwenya, que significa Malangatana Crocodilo. Em Timor, ele torna-se João Crocodilo!

Yves Depelsenaire, psicanalista da  École de la Cause Freudienne (ECF), crítico de arte e autor de “Le Musée Imaginaire Lacanien”, (Lettre Volée, Bruxelas, 2009)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Head in a cage

Brain like an orchestra

«"I would like to turn my attention now to the well-adapted, who are classified as "not ill," those who compete successfully, who dominate, possess, and conquer - in other words, those who appear to be free of anxiety, stress, and suffering. The attempt to divide people into categories of ill and not ill is doomed to failure because it does not take into account the real illness that being a victim produces. If this crucial aspect of our development is ignored, then our understanding of history must remain incomplete. Our desire to understand human history will be frustrated as long as we are not capable of recognizing the ubiquity of the stranger within, an inability that comes about because we are forced to deny the terror and pain we were once exposed to. This prevents us from recognizing our victimization and its source, with the result that obedience is perpetuated because it provides a false sense of security. If we disobey, then we are overwhelmed by feelings of guilt. ".»
A. Gruen, in 'The Need to Punish: The Political Consequences of Identifying with the Aggressor
in The Journal of Psychohistory, Vol 27, No.2, Fall 1999.
©André Masson, Surrealist mannequin 'Head in a Cage' (1938)
Laura Nadar

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

ZECA MEDEIROS - Fados, Fantasmas e Folias

Zeca Medeiros, o Cantautor magistral, poeta, crooner, actor, realizador Açoriano está de volta com este duplo álbum. Imprescindível. Eu, que já o ouvi, aconselho vivamente. E na próxima sexta, dia 11 de Fevereiro, 22 horas, actua no Teatro Cinearte- A Barraca. Entrada Livre e venda do CD. Vai ser memorável.
Com muitos artistas convidados como Rui Veloso, João Afonso, Uxia, entre muitos outros. Oiçam aqui o tema, com a cantora galega, "Santiago Campo d'Estrelas (À Galiza)".
http://www.myspace.com/283629900/music/songs/78327598
Maré Negra: NUNCA MAIS!
Sejam Felizes!

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Microconto IV

Voltou atrás no tempo, matou o avô, o pai dele não nasceu, ele não nasceu, não voltou atrás no tempo, não matou o avô, o pai dele nasceu, ele nasceu.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Porque vou votar em Manuel Alegre

Esta é uma declaração de voto a contragosto. Somando erro atrás de erro, Manuel Alegre perdeu muito do capital político e de esperança que uma figura com a sua, que pertence aquela pequena parte do PS com que vale a pena fazer pontes, certamente não merecia. Hoje por hoje toda a gente já percebeu o erro crasso que foi trabalhar para o apoio envenenado do PS de Sócrates. O próprio Bloco de Esquerda, o partido em que costumo votar nas legislativas, vai pagar caro (já está a pagar com algumas dissensões) a contradição que é estar a apoiar um candidato que, nesta campanha, anda a jogar um perigoso jogo do equilibrista, procurando agradar à esquerda sem comprometer o centro. Mesmo a campanha, em si, é uma desilusão, sem chama, sem rumo (o jogo do equilíbrio), e deixando transparecer uma imagem de solidão. Posto isto: vou votar Manuel Alegre. Por duas razões, que se mantém absolutamente válidas: primeiro, porque como a direita pura e dura percebeu muito bem, mas a esquerda mais "radical" parece incapaz de compreender, o verdadeiro candidato de Sócrates não é Alegre, mas Cavaco. Ou será que todo o processo inquinado que levou a um apoio tardio e com ares de forçado, ou a ausência da máquina-PS na campanha, são meras coincidências? A previsível derrota de Alegre vai também, como a direita pura e dura igualmente percebeu, dar uma machadada na ala esquerda do PS, e acabar com veleidades "secessionistas" e de aproximação ao BE, o que interessa a Sócrates e aos seus, e a mais ninguém. Segundo, porque se não vejo grandes diferenças para Sócrates entre ter Alegre ou Cavaco na presidência, já com um possível governo Passos Coelho tudo será diferente. Passos, Cavaco e o FMI: eis a tríade para destruir de vez o estado social em Portugal, e fazer-nos ainda ter saudades dos anos negros de Sócrates.
Pelos motivos que apresentei, preparo-me para engolir um sapo e depositar o meu voto num candidato que pouco me entusiasma. Mas fá-lo-ei sem remorsos: a política é, também mas não só, a arte do possível. Evitar a reeleição de Cavaco deve ser visto como um dever de cidadania para todos os que ainda acreditam num país solidário e livre, e nas funções sociais do Estado. É com muita pena que vejo que alguns não tem noção do facto de este ser um momento paradigmático e crucial para Portugal; preparam-se hoje as condições finais para o derradeiro ataque ao que resta do 25 de Abril, e para trocarmos o estado social pela selvajaria neoliberal. E é com alguma revolta que assisto a uma certa extrema-esquerda atacar todos os dias Alegre mas nunca Cavaco, trabalhando activamente para a vitória da direita, provando mais uma vez, se preciso fosse, que o seu papel actual na história define-se em uma palavra: reaccionário.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Microconto III

Morava no décimo-segundo andar. Apanhava o elevador até ao quinto, depois ia pelas escadas. O anão.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Microconto II

Em criança, levou com uma bola de futebol no meio das pernas. No hospital, retiraram-lhe um testículo. Ficou só com dois.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Microconto

Sempre que passava por ele, ela dizia-lhe olá. Ele nunca lhe respondeu. Ela entrou em depressão e matou-se. Ele era surdo.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Anjo Antigo (5)

Pintura de João de Azevedo (2004)

Manifesto dos economistas aterrorizados (Conclusão)

Conclusão 
DEBATER A POLÍTICA ECONÓMICA, TRAÇAR CAMINHOS PARA REFUNDAR A UNIÃO EUROPEIA

A Europa foi construída, durante três décadas, a partir de uma base tecnocrática que excluiu as populações do debate de política económica. A doutrina neoliberal, que assenta na hipótese, hoje indefensável, da eficiência dos mercados financeiros, deve ser abandonada. É necessário abrir o espaço das políticas possíveis e colocar em debate propostas alternativas e coerentes, capazes de limitar o poder financeiro e preparar a harmonização, no quadro do progresso dos sistemas económicos e sociais europeus. O que supõe a partilha mútua de importantes recursos orçamentais, obtidos através do desenvolvimento de uma fiscalidade europeia fortemente redistributiva. Tal como é necessário libertar os Estados do cerco dos mercados financeiros. Somente desta forma o projecto de construção europeia poderá encontrar uma legitimidade popular e democrática de que hoje carece.


Não é evidentemente realista supor que os 27 países europeus decidam, ao mesmo tempo, encetar uma tamanha ruptura face ao método e aos objectivos da construção europeia. A Comunidade Económica Europeia (CEE) começou com seis países: do mesmo modo, a refundação da União Europeia passará inicialmente por um acordo entre alguns países que desejem explorar caminhos alternativos. À medida que se tornem evidentes as consequências desastrosas das políticas actualmente adoptadas, o debate sobre as alternativas crescerá por toda a Europa. As lutas sociais e as mudanças políticas surgirão a ritmos diferentes, consoante os países. Os governos nacionais tomarão decisões inovadoras. Os que assim o desejem deverão adoptar formas de cooperação reforçadas para tomar medidas audazes em matéria de regulação financeira, de política fiscal e de política social. Através de propostas concretas, estenderemos as mãos aos outros povos para que se juntem a este movimento.

É por isso que nos parece importante esboçar e debater, neste momento, as grandes linhas das políticas económicas alternativas, que tornarão possível esta refundação da construção europeia.

Sinais

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Manifesto dos economistas aterrorizados (falsa evidência nº 10)

Falsa evidência n.º 10:

A CRISE GREGA PERIMITIU FINALMENTE AVANÇAR PARA UM GOVERNO ECONÓMICO E UMA VERDADEIRA SOLIDARIEDADE EUROPEIA 
A partir de meados de 2009 os mercados financeiros começaram a especular com as dívidas dos países europeus. Globalmente, a forte subida das dívidas e dos défices públicos à escala mundial não provocou (pelo menos ainda) uma subida das taxas de juro de longo prazo: os operadores financeiros estimam que os bancos centrais manterão, por muito tempo, as taxas de juro reais a um nível próximo do zero, e que não existe um risco de inflação nem de incumprimento de pagamento por parte de um grande país. Mas os especuladores aperceberam-se das falhas de organização da zona euro. Enquanto que os governantes de outros países desenvolvidos podem sempre financiar-se junto do seu Banco Central, os países da zona euro renunciaram a essa possibilidade, passando a depender totalmente dos mercados para financiar os seus défices. Num só golpe, a especulação abateu-se sobre os países mais frágeis da zona euro: Grécia, Espanha, Irlanda.


As instâncias europeias e os governos demoraram a reagir, não querendo dar a ideia de que os países membros tinham direito a dispor de um apoio ilimitado dos seus parceiros, e pretendendo, ao mesmo tempo, sancionar a Grécia, culpada por ter mascarado – com a ajuda da Goldman Sachs – a amplitude dos seus défices. Porém, em Maio de 2010, o BCE e os países membros foram forçados a criar com urgência um Fundo de Estabilização, capaz de indicar aos mercados que seria dado um apoio sem limites aos países ameaçados. Em contrapartida, estes deveriam anunciar programas de austeridade orçamental sem precedentes, que os condenam a um recuo da actividade económica no curto prazo e a um longo período de recessão. Sob pressão do FMI e da Comissão Europeia, a Grécia é forçada a privatizar os seus serviços públicos e a Espanha obrigada a flexibilizar o seu mercado de trabalho. E mesmo a França e a Alemanha, que não são vítimas do ataque especulativo, anunciaram medidas restritivas.


Contudo, globalmente, a oferta não é de nenhum modo excessiva na Europa. A situação das finanças públicas é melhor do que a dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha, deixando margens de manobra orçamental. É por isso necessário reabsorver os desequilíbrios de forma coordenada: os países excedentários do Norte e do centro da Europa devem encetar políticas expansionistas (com o aumento dos salários e das prestações sociais), tendo em vista compensar as políticas restritivas dos países do Sul. Globalmente, a política orçamental não deve ser restritiva na zona euro, tanto mais que a economia europeia não se aproxima do pleno emprego a uma velocidade satisfatória.


Mas, infelizmente, os defensores das políticas orçamentais automáticas e restritivas encontram-se hoje em posição reforçada na Europa. A crise grega fez esquecer as origens da crise financeira. Aqueles que aceitaram apoiar financeiramente os países do Sul querem impor, em contrapartida, um endurecimento do Pacto de Estabilidade. A Comissão e a Alemanha pretendem obrigar todos os países membros a inscrever o objectivo de equilíbrio orçamental nas suas constituições e vigiar as suas políticas orçamentais por comissões de peritos independentes. A Comissão quer impor aos países uma longa cura de austeridade para que se regresse a uma dívida pública inferior a 60% do PIB. Se existe algum avanço em matéria de governo económico europeu, é um avanço em direcção a um governo que, em vez de libertar o garrote das finanças, pretende impor a austeridade e aprofundar as "reformas" estruturais, em detrimento das solidariedades sociais em cada país e entre os diversos países.


A crise oferece de mão beijada, às elites financeiras e aos tecnocratas europeus, a tentação de pôr em prática a "estratégia do choque", tirando proveito da crise para radicalizar a agenda neoliberal. Mas esta política tem poucas hipóteses de sucesso, uma vez que:
  • A diminuição das despesas públicas comprometerá o esforço necessário, à escala europeia, para assegurar despesas futuras (investigação, educação, prestações familiares), apoiar a manutenção da indústria europeia e para investir nos sectores do futuro (economia verde);
  • A crise permitirá impor reduções drásticas nas despesas sociais, objectivo incansavelmente perseguido pelos paladinos do neoliberalismo, comprometendo perigosamente a coesão social, reduzindo a procura efectiva, empurrando as famílias a poupar para as suas reformas e a sua saúde junto das instituições financeiras, responsáveis pela crise;
  • Os governos e as instâncias europeias recusam-se a estruturar a harmonização fiscal, que permitiria um necessário aumento de impostos sobre o sector financeiro, sobre o património e sobre os altos rendimentos;
  • Os países europeus terão de implementar, por um longo período, políticas orçamentais restritivas que vão afectar fortemente o crescimento. As receitas fiscais diminuirão e os saldos públicos apenas registarão ligeiras melhoras. Os rácios de dívida irão degradar-se e os mercados não ficarão tranquilos;
  • Face à diversidade de culturas políticas e sociais, nem todos os países europeus se poderão ajustar à disciplina de ferro imposta pelo Tratado de Maastricht; nem se ajustarão ao seu reforço, que actualmente se prepara. O risco de activação de uma dinâmica generalizada de recusa deste reforço é real.
Para avançar no sentido de um verdadeiro governo económico e de uma verdadeira solidariedade europeia, propomos para discussão duas medidas:

Medida n.º 21 : Desenvolver uma verdadeira fiscalidade europeia (taxa de carbono, imposto sobre os lucros, etc.) e um verdadeiro orçamento europeu, que favoreçam a convergência das economias para uma maior equidade nas condições de acesso aos serviços públicos e serviços sociais nos diferentes Estados membros, com base nas melhores experiências e modelos;

Medida n.º 22 : Lançar um vasto plano europeu, financiado por subscrição pública a taxas de juro reduzidas mas com garantia, e/ou através da emissão monetária do BCE, tendo em vista encetar a reconversão ecológica da economia europeia.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O Espectro da Anarquia

O Espectro da Anarquia - mesa-redonda

Casa da Achada: sábado, 8 de Janeiro, 15h, entrada livre. Organização: UNIPOP

ParticipaçõesAntónio Cunha (Colectivo Casa Viva) , António Pedro Dores (Sociólogo, professor no ISCTE), José Maria Carvalho Ferreira (Economista, professor no ISEG), José Neves (Historiador, professor na FCSH), Miguel Madeira (Economista), Miguel Serras Pereira (Tradutor), Ricardo Noronha (Doutorando em História) - estes quatro últimos também bloggers no excelente Vias de Facto.

«O recurso a etiquetas ideológicas é uma prática recorrente, quer por parte de correntes de pensamento e movimentos sociais e políticos quer por parte dos poderes instituídos. Se para os primeiros uma lógica de fixação identitária parece impô-lo, para o segundo trata-se de uma técnica de definição de um inimigo, interno ou externo, identificável, de um processo de naturalização do recurso à violência autorizada. «Comunismo», «terrorismo», «antiglobalização», «anarquismo» têm sido algumas dessas etiquetas. Mais recentemente, o «anarquismo» – ou mais sofisticadamente as «ideias anarquistas» – instalou-se no espaço mediático a propósito de um conjunto de movimentações sociais contra os poderes instituídos. Detenções, condenações judiciais, cordões policiais em manifestações, a coberto da defesa da democracia contra as «ideias anarquistas», têm, na verdade, sustentado a criminalização de todas as lutas que procuram situar-se para lá da intervenção política e social institucionalizada. Partindo do reconhecimento de que por detrás da designação «anarquismo» se esconde uma enorme pluralidade teórica e prática, a UNIPOP propõe uma discussão acerca do percurso histórico das «ideias anarquistas» em Portugal, bem como uma abordagem cruzada de algumas das tradições teóricas que se colocam sob essa etiqueta.»

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Anjo Antigo (4)

Pintura de João de Azevedo (2004)

Manifesto dos economistas aterrorizados (falsa evidência nº 9)

Falsa evidência n.º 9:

O EURO É UM ESCUDO DE PROTECÇÃO CONTRA A CRISE 
O euro deveria ter funcionado como um factor de protecção contra a crise financeira mundial, uma vez que a supressão da incerteza quanto às taxas de câmbio entre as moedas europeias eliminou um factor relevante de instabilidade. Mas não é isso que tem sucedido: a Europa é afectada de uma forma mais dura e prolongada pela crise do que o resto do mundo, por factores que radicam nas opções tomadas no processo de unificação monetária.


Após 1999, a zona euro revelou um crescimento económico relativamente medíocre e um aumento das divergências entre os seus Estados membros em termos de crescimento, inflação, desemprego e desequilíbrios externos. O quadro de política económica da zona euro, que tende a impor políticas macroeconómicas semelhantes a países com situações muito distintas ampliou assim as disparidades de crescimento entre os Estados membros. Na generalidade dos países, sobretudo nos maiores, a introdução do euro não suscitou a prometida aceleração do crescimento. Para outros, o euro trouxe crescimento, mas à custa de desequilíbrios dificilmente sustentáveis. A rigidez monetária e orçamental, reforçada pelo euro, concentrou todo o peso do ajustamento no trabalho, promovendo a flexibilidade e a austeridade salariais, reduzindo a componente dos salários no rendimento total e aumentando as desigualdades.


Esta trajectória de degradação social foi ganha pela Alemanha, que conseguiu gerar importantes excedentes comerciais à custa dos seus vizinhos e, sobretudo, dos seus próprios assalariados, impondo uma descida dos custos do trabalho e das prestações sociais que lhe conferiu uma vantagem comercial face aos outros Estados membros, incapazes de tratar de forma igualmente violenta os seus trabalhadores. Os excedentes comerciais alemães limitaram portanto o crescimento de outros países. Os défices orçamentais e comerciais de uns não são senão a contrapartida dos excedentes de outros… O que significa que os Estados membros não foram capazes de definir uma estratégia coordenada.


A zona euro deveria, de facto, ter sido menos afectada pela crise financeira do que os Estados Unidos e o Reino Unido, pois as famílias da zona euro estão nitidamente menos dependentes dos mercados financeiros, que são menos sofisticados. Por outro lado, as finanças públicas encontravam-se em melhor situação; o défice público do conjunto dos países da zona euro era de 0,6% do PIB em 2007, contra os quase 3% dos EUA, do Reino Unido ou do Japão. Mas a zona euro padecia já então de um agravamento profundo dos desequilíbrios: os países do Norte (Alemanha, Áustria, Holanda, países escandinavos), comprimiam a massa salarial e a procura interna, acumulando excedentes externos, ao passo que os países do Sul e periféricos (Espanha, Grécia, Irlanda) revelavam um crescimento vigoroso, impulsionado pelas baixas taxas de juro (relativamente à taxa de crescimento), acumulando todavia défices externos.


A crise financeira começou, de facto, nos Estados Unidos, que trataram imediatamente de accionar uma política efectiva de relançamento orçamental e monetário, dando início a um movimento de restauração da regulação financeira. Mas a Europa, pelo contrário, não soube empenhar-se numa política suficientemente reactiva. De 2007 a 2010, o impulso orçamental ficou-se timidamente nos cerca de 1,6% do PIB na zona euro, sendo de 3,2% no Reino Unido e de 4,2% nos EUA. As perdas na produção causadas pela crise foram nitidamente mais fortes na zona euro do que nos Estados Unidos. Na zona euro, a agudização dos défices precedeu portanto qualquer política activa, comprometendo os seus resultados.


Simultaneamente, a Comissão Europeia continuou a aprovar procedimentos contra os países em défice excessivo, a ponto de em meados de 2010 praticamente todos os Estados membros da zona euro estarem sujeitos a esses procedimentos. A Comissão obrigou então os Estados membros da zona euro a regressar, até 2013 e 2014, a valores percentuais de défice inferiores a 3%, independentemente da evolução económica que pudesse verificar-se. As instâncias europeias continuaram portanto a exigir políticas salariais restritivas e a regressão sistemática dos sistemas públicos de reforma e de saúde, com o risco evidente de mergulhar o continente na depressão e de suscitar tensões entre os diferentes países. Esta ausência de coordenação e, fundamentalmente, de um verdadeiro orçamento europeu, capazes de suportar uma solidariedade efectiva entre os Estados membros, incitaram os agentes financeiros a afastar-se do euro, preferindo especular abertamente contra ele.


Para que o euro possa proteger realmente os cidadãos europeus da crise, colocamos em debate três medidas
:
Medida n.º 18 : Assegurar uma verdadeira coordenação das políticas macroeconómicas e uma redução concertada dos desequilíbrios comerciais entre os países europeus;

Medida n.º 19 : Compensar os desequilíbrios da balança de pagamentos na Europa através de um Banco de Pagamentos (que organize os empréstimos entre países europeus);

Medida n.º 20 : Se a crise do euro conduzir à sua desintegração, e enquanto se aguarda pelo surgimento de um orçamento europeu (cf. infra), instituir um regime monetário intra-europeu (com moeda comum do tipo "bancor"), que seja capaz de reorganizar a absorção dos desequilíbrios entre balanças comerciais no seio da Europa.

Sinais

Desenho de Maturino Galvão

Correio Interno


 André,

            Mais um ano de crescimento português, este 2011. Exportar! parece ser o concordante mote. A classe política dos variados quadrantes ulula: “crescei e exportai!”. E o défice descerá. A riqueza regressará. E o consumo poderá ser, desafogadamente feito, fora da época dos saldos e mais uns fiapos de carne irão à mesa do povo.
2010 excedeu expectativas. O nobre povo “submarinizou-se”, “histórionatou-se”, “PTou-se”, “SCUTou-se”, “PECizou-se”, “papou-se”: – visitaram-no não menos que dois Papas, Bento e Barack – povo que, por uma unha envernizada, não ganhou o Mundial de Futebol. (E ainda houve a mitose de Ronaldo). Este é o povo bafejado. O povo linha da frente. E percebe-se porquê? devotado a Maria, Ela lhe põe a mão por baixo, amparando-o de males e conduzindo-o nas boas acções do mercado do Senhor.
            Deveras, a maneira de ser português, só pode ser milagrosa. Há dias circulavam notícias de que mais um conclusivo estudo concluía que os jovens liceais não sabiam ler, contar, raciocinar, tricotar e outros verbos imprescindíveis à condição bípede. Alevantaram-se vozes concordantes: que era uma vergonha, uns analfabetos, uns burros excluídos do deleite de um Eça de Queirós ou de um Moita Flores, onde é que isto vai parar? no futuro, não compreenderão as traduções do Google Tradutor nos produtos chineses? Mas, o mais interessante, é que ninguém se lembrou: em primeiro lugar, que essa conversa da “burricidade” vem do tempo de Viriato; e segundo, que esses mesmos jovens saem do liceu e, milagre!!!, se tornam gabaritados intelectuais, que escrevem nos jornais, nos blogs, nos livros e revistas, abalizadas opiniões, precisamente, desabafando contra as trovas da burrice que grassa.
            Outro milagre!!! é a História do nosso actual pesar ter começado apenas há 15 anos, parece quererem excluir Cavaco do relógio de cuco do tempo. No tempo dele também não havia dinheiro para se construir o Centro Cultural de Belém, no entanto, construiu-se e derrapou-se à brava, muitos enriqueceram, outros receberam salário, e a economia vivificou. Talvez o professor de economia sabe-tudo aconselhe que gastar é um bom deal, que um TGV, um aeroporto, mais estrada, menos estrada, serão bons benchmarkingspara o povo que, em 2011, terá Presidente e Governo novinhos em folha.

            Um abraço,

Maturino Galvão

sábado, 1 de janeiro de 2011

Insensatez.


Nara Leão, in Insensatez;
Composição: Tom Jobim e Vinícius de Moraes;


Que sejamos todos (um bocado in) sensatos.
Um bonito 2011.