terça-feira, 12 de setembro de 2006

Conto

Antes do passamento físico

É em surdina, nos acordares, visitado por duas moles colinas mesmo abaixo do já sem verde dos olhos, a ocuparem-lhe artisticamente o descomeço.
Antes do chapéu da sexta noite assentar, descruza miudamente os pensamentos, de modo a que a vontade do passeio não fique a atravessar-lhe a garganta em modo parado. Desliza pelo antigo pescoço os grossos dedos da mão descasada com a doença, arruma o seu volumoso caroço de Adão mais para cima, experimenta apagar a rouquidão já mecânica com murros curtos no peito e lança-se no ímpeto dessa utilidade, a sedução.
Há muitas estatuetas de esquina que quebram as ancas e o sedimento da resignação da idade, di-lo a sua mão escapulida à imobilidade ainda com desejos de pássaro - toda a superfície macia de uma mulher é de se voar. Nem todos podem fazer descaso disso. É uma benção inscrita no jeito duvidoso do homem, umas vezes parece que não sabe outra coisa mas alheio ao acto, estorva-lhe esse chilreio de mundos, parece que sobram do silêncio, as mulheres. O homem nesse arrogante descontacto, decora-se de outra ambição. A de ser o invasor dos espaços com seu arco macho, essa voz grave que emudece os olhos das casas e estremece de escuro as almas femininas que lá suportam o tecto.
Mas nem sempre o abraço do homem é vento a deformar a feitura composta de um rosto, há também a mansidão na mesma morada. É só saber o momento dessa estadia.
Sabem-no as mulheres que o servem, dorsos riscados pelas palmas alheias, que no corpo, a verdade existe em profundeza de temido rio.
Muito homem para também escancarar as pernas do riso, em velho tronco, ajeita-se de ossos parados, aterrados sem hélice sobre o compacto pavimento do macio ventre, sem escolha de não ser voado. Os céus vão e voltam sob azuis maiores.
Recompõe-se apressado na cor da sua adultez, agarrado a nada, antes das duas moles colinas desaguarem para o mistério.
A terra também há-de sorvê-lo em desejo tamanho de verme másculo, matuta devagarzinho o rio.

Fim

Nyiama Ludo

Metro (1)

 
Foto de José Salvado Posted by Picasa

Mortos-ricos e mortos-pobres

Terminei há pouco de ver uma série de documentários nas várias estações de televisão sobre o 11 de Setembro. Houve um que (naturalmente) me impressionou sobremaneira: ficcionava, através dos testemunhos dos sobreviventes, o que de facto se passou no interior das torres atingidas. O horror, o medo, os actos de coragem excepcional, etc. Acontece que dei por mim a pensar sobre o que terá aquele horror concreto, aquela experiência-limite de destruição e morte, de mais importante que o horror diário por que passam centenas, milhares, de seres humanos todos os dias por esse mundo fora, de tal modo que este é retratado em documentários, enquanto o outro permanece o triste sofrimento anónimo dos sem-voz. É que uma coisa é o valor simbólico e inscricionário do acontecimento 11 de Setembro, e a sua importância na definição de novos paradigmas históricos, e outra bem diferente é o acontecimento em si, o que lá se passou naquele dia concreto, com todas aquelas pessoas concretas. Vejam se me entendem: eu não estou a diminuir o sofrimento e a morte de milhares de americanos nesse hediondo ataque contra civis; o que eu gostava, era que de uma vez por todas se deixasse de dar mais importância a uns mortos que outros.

Estes pensamentos lembraram-me deste post que escrevi nos alvores deste blogue, sobre os atentados de Londres. Termina com esta frase: «a medida da barbárie é o relativismo quanto aos mortos».

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Série de Ouro (8)

Ele: É necessário qualquer coisa mais, para além do fascínio. É esse o passo misterioso, impossivel de definir, que talvez nos afaste para sempre.
Ela: És demasiado taxativo, pensas ter todas as respostas, e porque dizes "para sempre", como se houvesse necessidade de um castigo, de carregar uma cruz, e mais: como se aquilo que vês hoje fosse cristalizado? Não sabes que as coisas mudam?
Ele: Talvez tenhas razão. É esse o defeito dos filósofos, vivem à procura de um modelo que fixe aquilo que talvez não se possa fixar, por estar sempre em mudança.
Ela: Vês? Ainda por cima não tens paciência nenhuma!
Ele: De qualquer modo, meu amor, os sonhos acabam. Amanhã vou partir.
Ela: Adeus, meu amor.
Ele: Adeus...
(Fim de Série)

Série de Ouro (7)

«Pode talvez chamar-se a teoria que tento praticar e o fundamental não é ter teorias todos as temos é tê-las e praticá-las que aí é que está a grande gaita, uma teoria masoquista do amor, marimbando-me. É assim: se amas, deseja para a pessoa amada o melhor, olha bem para ela e procura saber o que ela quer precisa deseja ama e procura dar-lho, tanto quanto possas mesmo anulando-te, desaparecendo da vida dela, sentindo-a viver feliz longe de ti e sabendo e chorando. É muito chato isto e às vezes insuportável de aturar, é um caminho debilitante para o suicídio. O contrário disto, que também já fui e sem remorsos nenhuns, é o vampiro. Já deixei para trás, porém, muitas vítimas e se não me arrependo não quero não desejaria fazer mais.»

Luiz Pacheco in "Exercícios de Estilo"

Instante

Esta coluna

de sílabas mais firmes,

esta chama

no vértice das dunas

fulgurando

apenas um momento,

este equilibrio

tão perto da beleza,

este poema

anterior

ao vento.

Carlos de Oliveira

Pote (4)

 
Margarida Veiga Magalhães Posted by Picasa

domingo, 10 de setembro de 2006

8º Prémio Literário Manuel Barbosa du Bocage

Dia 15 de Setembro
àS 21:30 HORAS

na Câmara Municipal de Setúbal
(Edifício Paços do Concelho)
No Salão Nobre da Câmara Municipal

Praça do Bocage
2901-866 Setúbal

o Nelson Ngungo Rossano, do Caminho dos Versos, recebe o 8º Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage

Do 2+2=5 um abraço de parabéns.

Encontros D' Évora - 1976 (1)

Foto de Rita Benz

Posted by Picasa
Pintura de Filpe Gonçalves

Tango

Se por acaso nos amarmos esta noite,

amanhã há-de ser como se nada tivesse acontecido.

Mas, se nos amarmos esta noite,

será com raiva e desespero de amanhã ser como se nada tivesse acontecido.


Amei-te ao nascer das luzes sobre o asfalto molhado,

ou amei-te anos sem fim?

Lembro-me de ti não sei donde, talvez

dos sonhos de todos os homens que antes de mim sonharam

o amor como uma nova eternidade.


Adolfo Casais Monteiro

sábado, 9 de setembro de 2006

Summertime - Ella Fitzgerald


Olivier Roy: USA criaram a "jihad/guerra santa global"

O politólogo do CNRS francês publicou um texto no NY Times onde afirma que a FINUL será incapaz de desarmar o exército do Hezbollah, a guerra civil iraquiana tende a crescer e o Irão irá assumir-se como a potência regional

O politólogo e grande especialista do Médio Oriente acusa a " arrogância e impotência " da política norte-americana no Médio Oriente, que aglutinou a origem diferenciada dos problemas na Palestina, no Líbano e no Iraque, e que deviam e mereciam ser tratados separadamente, o que originou agora numa mistura que despoletou uma guerra santa global.

Roy aponta que a " guerra contra o terror " incrementou as " tensões " no Médio Oriente. "Qualificou superiormente o radicalismo árabe e o religioso, ao mesmo tempo. E promoveu o Irão na liderança regional por destruição dos seus arqui-inimigos Saddam Hussein e os taliban), do mesmo modo que propulsou os xiitas ao poder no Iraque ", sublinha.

" A democratização constitui um falhanço total por uma razão simples: ignorou o facto de que jamais poderia existir um projecto abstracto, de início, um sistema político Jeffersioniano; devendo ser, pelo contrário, ligado e enraizado em dois elementos que fornecem a legitimidade a qualquer projecto no Médio Oriente - nacionalismo e Islão ", pontua.

Roy volta a insistir na tese de que a administração Bush-Cheney ( o staff do vice anda desmoralizado segundo outras notícias veiculadas pelo NYT) desviou o dinheiro e as tropas do combate no Afeganistão, que era e é uma das possíveis soluções para a vasta zona. Ao mesmo tempo que o envio de tropas de ocupação como metáfora real da " guerra contra o terror" falhou redondamente.

" A guerra contra o terror espalhou os exércitos ocidentais em prolongados conflitos locais onde as alternativas são mais importantes do que o global terror (nacionalismo, territorialidade, guerras civis, etc). Estes exércitos estrangeiros estão exaustos e errantes, mostrando-se incapazes de fazer frente no longo termo a qualquer tipo de hostilidades e mudanças , frisa.

" A consequência de tão descomunais erros radica no contraditório discurso da administração Bush: não abranda a guerra contra o terror e, consequentemente, recusa discutir com as forças políticas alcunhadas de terroristas (Hamas, Hezbollah e regime iraniano), enquanto que, ao mesmo tempo, não tem força para avalizar um crescendo de força contra eles ", remata.

FAR
 
Foto de José Carlos Mexia

Da série Vale do Grou: Inauguração da luz eléctrica. 1982 Posted by Picasa

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Contos do Verão .6

O Verão a acabar. Agora vem aí o Outono. Bela estação para se começar o ano escolar. A queda das folhas faz-me lembrar a depressão do meu pai. O homem ficou preso aos tiques e às convicções de “Grande Timoneiro”. Uma mistura, caseira, do Henrique Monteiro, do Expresso, com o José Manuel Fernandes, do Público, e ainda com os maneirismos do Espada, de Oxford. Só que o meu pai, coitado, propôs-se objectivos mais modestos. Tentou educar a família. Família alargada, entenda-se. E, num Verão como este que está no fim, passámos a ser menos. Foi as últimas férias que passámos juntos. Quase juntos. A minha madrasta, acabada a Universidade, estava a estagiar e a lutar pelo primeiro emprego. O meu pai tratava de nós e da casa. Parecia a “Música no Coração” sem governanta. Isto é, o meu pai fazia também de governanta. Acordávamos e deitávamo-nos com hora marcada. Aliás tínhamos hora para tudo. Para as refeições, para a praia, para os jogos, para as lições. E, quão divertidas as aulas que tínhamos! Português, Matemática e Música. As de música então eram um espanto. Sobretudo os últimos 30 minutos. O meu pai convocava a especial atenção do meu irmão, na altura, com três anos, trazia o xirico e o canário do Härz, punha o James Brown a cantar o “sex machine” e tudo solava. O timoneiro gostava do multiculturalismo. Na primeira quinzena de Julho e durante o mês de Agosto foi assim, todos os dias, à mesma hora. Não sei se estas rotinas eram por amor a Phileas Fog ou a Kant. Sei como tudo acabou. Faz, por esta altura, anos. Já em Setembro, o xirico e o canário apanharam-se com a gaiola aberta e fugiram. Quem a abriu? Penso que um foi para Norte e o outro para Sul. A minha madrasta feito o estágio entrou para os quadros da empresa e mandou o meu pai ir pregar para outra freguesia. Ao meu pai caiu-lhe um muro, maior do que o de Berlim, em cima. Deixou-se de querer educar. Mas, nem sabe o êxito que teve. Um dia, no Outono, ou noutra estação qualquer, eu e o meu irmão, cada um por si, sairá a cantar por aí o “I’m a sex machine” , esvoaçando para Norte ou para Sul.

Josina MacAdam

Flor & flores


Foto de José Salvado

Amor e trevas

Ao Alexandre O´Neill


Falta sempre dizer

o que vem mais do fundo;

a palavra melhor

não se fez para ouvidos.


O coração desperto

em vão fica à escuta

-no ar pairam só asas.


A. Casais Monteiro

Retratos de Gente

France Rocha
(Sissine)

Farfouille de St. Etienne
Exposição de trabalhos em cerâmica

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

Série de Ouro (6)

«O amor humano é um acto de solidão. Vi-te pela primeira vez no corpo de outra mulher. O nosso amor é uma série de acasos, encontros e desencontros, aparece nos olhos desta, nas palavras de outra, nas carícias e ternuras de uma outra... Vive, cresce, enriquece-se de semelhanças e contrastes, sedimentos, memórias, repulsas, ódios, amarguras, desesperanças, todas elas casuais, inesperadas... É como um feto: rola no calor vazio do mar uterino até tomar forma, definir-se entre homem e mulher, leva tempo, uma vida interior a nascer, até nascer, inteiro, perfeito e definido. E quando isso acontece, quando sabemos tudo dele, está pronto para morrer.»

Luiz Pacheco, in "Exercícios de Estilo"

Contos pequeníssimos

esta grandeza de não a ter

é mais pequena que a de não desejar tê-la


e se o preço de participar é grandeza

não contem comigo

não participo

não participo nem contra grandeza


nasci ar

em forma de gente


nasci luz

em forma de gente


não me compreendo

e respiro-me

e vejo-me textual


a forma de gente faz-me agir fora do que nasci ar

fora do que nasci luz


e nasci ar para forma de gente

e nasci luz para forma de gente


nasci antes de mim

antes de forma de gente



era génio antes de nascer

em forma de gente

a forma de gente não me deixa ser o génio que nasci.

José de Almada Negreiros