domingo, 11 de janeiro de 2009

Um Imenso Adeus

Termino com este post a minha participação aqui.
Diverti-me muito nestes meus três anos de blogosfera, quer a fazer isto, quer a visitar os blogues que constam da nossa lista. Fiz novos amigos, reencontrei velhos amigos e, para ser verdadeiro, também perdi amigos.
Agradeço aos que colaboraram neste projecto colectivo. Agradeço a quem nos linkou e a quem nos visitou.
Não vou apagar o blogue. Tenciono continuar a clicar nos links que temos. Publicarei ainda partes do vídeo do concerto do 10º Aniversário de Los Santeros. O André ficou com a tarefa de republicar os melhores posts que por cá apareceram. Tomei esta decisão ontem no jantar comemorativo dos 60 anos do João Carapinha. Foi com eles, André e João, que esta coisa começou.
Não tenho jeito para dizer mais.

Beijinhos e abraços

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Letra para um blues

DJOM PÓ-DI-PILOM


Mi própi qu’ê Djom,
Djom Pó-di-Pilom,
qu’ê dono di tchom,
tamanho, largom,
co midjo, rolom,
mandioca, fijom,
batata, mamom,
barnela, cimbrom
co pé di polom!

Mi própi qu’ê Djom,
Djom Pó-di-Pilom,
fadjado, roscom!
Casa, quintalom,
co pato, pintom,
galinha, frangom,
tchiquêro, litom
co roda fogom,
co tcheu calderom
ê‘Nhor Deus qui pô!

Mi própi qu’ê Djom,
Djom Pó-di-Pilom,
qui djunta tistom
contado na mom,
tó qu´intchi cerom,
saco, garrafom,
caxa papelom
co três balaiom,
pa mi co nh’irmom!

Mi própi qu´ê Djom,
Djom Pó-di-Pilom,
fadjado, roscom,
qu´ê dono tchom,
qui tem tcheu tistom
má qui ca ladrom!

Jorge Pedro Barbosa. 1958

(Poema musicado por Mad Dog & Los Santeros)

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

10º aniversário de Los Santeros

Concerto na sexta-feira, 9 de Janeiro, às 22:00h, no Alburrica Bar - Barreiro


10 anos "bêbados, a cuspir e a tocar tudo menos música"!!!


Grandioso concerto de Los Santeros com milhões de convidados especiais. Foi no dia 9 de Janeiro de 1999 que A Banda tocou pela primeira vez em Portugal, curiosamente no Barreiro. Dez anos depois, abençoados pela passagem destes verdadeiros colossos do Black-Blues, Death-Rock, Novo-Riquismo-Mariachi e Surf Pontilhista, teremos uma noite memorável, se todos tiverem juízo.


Mad Dog associa-se ao evento homenageando La Santeria com o seu Cabo Verde Blues

Sinais


Desenho Maturino Galvão

Perú (10)




Lima. 2008

Fotos Joana Ralha

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Como engordar os obesos

A obesidade financeira passa por não ser doença. Bem vistas as coisas talvez seja, porque também ela se constrói por toxicidade acumulada. Como a original, hambúrguer/ketechupe e pipocas, viabiliza uma meteórica ascensão ao porcino triunfo. Diversa, a Ob. do tipo financeiro, é completamente SPA: banho turco com esguicho escocês pela frente e nas costas altas.
Entretanto a OBFIN (léxico dos paraísos fiscais) é identicamente mórbida como a Ob. proteica. Não da morbidez da toxicidade específica do dinheiro, mas daquela da finta ao fisco e outras magias tácticas, próprias da toxicidade específica dos processos de adquiri-lo, e também daquela, mais específica ainda, que é a do dinheiro falso que, como se sabe, é de dois tipos: o contrafeito a gosto e o dos outros que é nosso, jogado no Casino global em sede de virtude própria. Quem pode dizer agora que Dona Branca não era de imaculada seriedade gestora?
A gestão – sempre se soube que a dos proventos e suor alheios faz as fortunas -, é a via mais frequente do sucesso e acontece aos falsos magros. Por exemplo, o muito a pulso Dr. Oliveira e Costa é um falso magro, de tal modo que a sua receita para a obesidade financeira atraiu muitos outros também falsos magros, como o insuspeito Dr. Loureiro que todos os santos protegem, mesmo os laicos.
É também óbvio que os falsos magros da Opus deles, banqueiros e peregrinadores a Rolls-Royce – não as do pecado para arrependimento catártico, o recurso a São Viagra remete a traição para a intangibilidade da química –, também são obesos financeiros, mas neste caso, fazem mais facilmente o papel de criaturas morais porque, vá-se lá a saber como, são eles que ditam a lei da moralidade que baseia o tal poder independente da justiça idêntico ao poder dependente da justiça. E dependente de quem? Da hidra, de rosto multiforme e sucessivo poder global com delegados locais, cabecitas anãs da serpente.
Como se sabe juiz em causa própria é hoje a regra e receita. Para tal vende-se a mentira mantida fresca na rede de frio espectacular enquanto o facto novo necessitar de se impor (reputações de seriedade, por exemplo) até à saturação – aí já ninguém lhe resiste. Os ecrãs privados públicos e públicos privados cumprem as ordens de quem, de cima, não necessita de as exibir. Não há aliás mecanismo de exposição crua da verdade que sobreviva às camadas de publicidade ideológica cuja potência de branqueamento do ilícito jogado são a regra, o que estrutura o sistema, dos bancos ao governo, das empresas ao governo, das empresas aos bancos, do publico ao privado e das polícias à própria lei e parlamentos. A rede tece as suas malhas de modo multipolar e não necessita de um centro. Os centros são plurais, plutocratas e igualmente mafio-democráticos. Todos nós conhecemos o modo como os gangs geram e gerem os seus territórios lucrativos. O ponto a que chegámos torna indistinta a fronteira entre os verdadeiros e os supostamente virtuosos. De acordo com a lei de facto, a do poder no presente e do presente, obviamente que todos os que mexem com dinheiro ungido por um qualquer baptismo legal são virtuosos, tanto os do tráfico da cocaína, como os do tráfico do dinheiro especulado. A virtude compra-se como qualquer outro produto e compra-se obviamente nas lojas do Estado – o Estado, é a especialidade dos tribunais e das polícias, vende virtude(s) a preços obviamente proibitivos para as pessoas comuns, há cauções que são quase Pibes –, nessas que ainda jogam algum poder. Alguma dúvida? De Porto Rico ao Iraque só não vê quem não tira a cabeça da areia por amor do ilógico e do breu.
Em síntese: tudo como a fruta calibrada, custa mais que a outra e é legal. Mas de facto é feita de ração para maçã e é muito mais bela do que a verdadeira. Quem não lhe corre atrás? Os obesos financeiros - falsos magros, são como estas maçãs, cheios de virtude por fora e fedem por dentro, não do bicho mas da química de casta.
A fim e ao cabo coitados, de tão obesos, aos falsos magros há que engordar. É o que faz quem manda seguindo o alto espírito laico da caridade igualitária. E secretamente, a alma do negócio, com o ruído necessário à diversão táctica em fundo, mesmo na face.


Fernando Mora Ramos

Ainda o Novo México (9)


Nuvens.

Foto Jota Esse Erre

domingo, 4 de janeiro de 2009

Sinais


Desenho Maturino Galvão

Em viagem de férias (19)


Nova pintura/T.Magnusson. 2008


Foto Sérgio Santimano

"A grande explicação desse emaranhado"

O estrangeiro, um empresário ocidental, sentou-se ao meu lado durante um almoço da Asia Society em Hong Kong e me fez uma pergunta que, digo honestamente, jamais tinha sido feita até então: “Até que ponto a América está corrompida?” A pergunta veio a propósito da prisão do gestor de recursos e investidor Bernard Madoff, acusado de dirigir um chamado esquema Ponzi que lesou investidores em bilhões de dólares, mas não foi só por isso.

É toda essa maldita confusão que se verificou em Wall Street - o centro financeiro que os financistas de Hong Kong sempre admiraram. E eles se perguntam como nomes de marca do porte de um Bear Stearns, Lehman Brothers e AIG puderam acabar com os pés na lama? Onde, eles perguntam, estava a nossa Comissão de Valores Mobiliários e os rígidos padrões que nós pregamos para eles durante todos estes anos? Um dos mais respeitados banqueiros de Hong Kong, que pediu para não ser identificado, disse-me que a empresa de investimento americana onde trabalha fez fortuna na última década colocando ordem em bancos asiáticos enfermos. E isso foi feito importando as melhores práticas americanas, particularmente o princípio do “conheça o seu cliente” e os rígidos controles de risco. Mas agora, ele perguntou, para onde olhar em busca de uma liderança exemplar? “Antes havia os EUA”, disse ele. Supunha-se que os investidores americanos tinham um conhecimento melhor e agora o próprio país está em dificuldades. Para quem vão vender seus bancos? É difícil para a América adotar os próprios remédios prescritos com sucesso para outros. Já não há mais médicos. O próprio médico está doente.

Não simpatizo com Madoff. Mas o fato é que o seu alegado esquema Ponzi foi apenas ligeiramente mais vergonhoso do que o esquema “legal” que Wall Street conduziu, alimentado pelo crédito barato, parâmetros medíocres e uma enorme ganância. Que nome dar para o fato de se dar a um trabalhador que ganha US$14 mil por ano uma hipoteca sem entrada e sem prestação por dois anos, para comprar uma casa de US$750 mil e depois transformar essa hipoteca em bônus - que a Mooddy’ s ou a Standard & Poors classificam como títulos AAA - vendendo-os depois para bancos e fundos de pensão pelo mundo todo? Era isso o que o nosso setor financeiro estava fazendo. Se não se trata de um esquema de pirâmide, então o que é? Longe de estar fundamentado nas melhores práticas, este esquema Ponzi legal teve por base os corretores hipotecários, pacotes de bônus, as agências de classificação, os vendedores de títulos e os proprietários de imóveis, todos trabalhando segundo o princípio IBG (“I’ll be gone” - já terei partido) quando os pagamentos vencerem ou a hipoteca tiver de ser renegociada.

É revelador e deprimente observar a nossa crise bancária a partir da China. É difícil evitar a conclusão de que Estados Unidos e China estão se tornando dois países e um único sistema.

Como assim? Fácil: diante do enorme pacote de ajuda aos bancos, pode-se agora olhar para os dois e dizer: “Bem, a China tem um enorme setor bancário estatal ao lado de um privado e os EUA hoje têm um enorme setor bancário estatal ao lado de um privado. A China tem grandes setores estatais, juntamente com setores privados e, tão logo Washington preste sua ajuda financeira a Detroit, os EUA terão um enorme setor estatal ao lado de setores privados.

Pode parecer exagero, mas a verdade é que as diferenças começam a ficar menos claras. Por duas décadas, autoridades americanas desfilaram por Pequim, pregando sobre a necessidade de a China privatizar bancos, disse Qu Hongbin, economista chefe do HSBC na China. “Assim, lentamente nós assim o fizemos, e agora, repentinamente, vemos todo mundo nacionalizando os seus bancos”.

É deprimente porque a China, sob vários aspectos, sente-se mais estável do que os EUA hoje, com uma estratégia mais clara para superar a crise. E embora os dois países pareçam mais semelhantes, também parecem estar em trajetórias muito diferentes. Enquanto o capitalismo salvou a China, o fim do comunismo parece ter perturbado os EUA que perdeu os dois maiores concorrentes ideológicos : Pequim e Moscou. Quando o capitalismo americano não precisou mais se preocupar com o comunismo, parece ter enlouquecido.

Os bancos de investimento e os fundos de hedge se endividaram em níveis insanos, pagando para si mesmos salários absurdos e inventando instrumentos financeiros que desconectaram os credores dos tomadores de empréstimos, sem nenhum responsável. É por isso que não precisamos de um pacote de ajuda financeira; precisamos de uma ajuda ética, restabelecer o equilíbrio básico entre nossos mercados.

Thomas Friedman, THE NEW YORK TIMES

Com a devida vénia ao Ladrões de Bicicletas

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Perú (9)




Trujillo. 2008

Fotos Joana Ralha

POEMA

Mil países que

yo no conozco,

mil estrellas y

túneles,

mil países y pueblos,

mil y un puentes

incontables.

Desconocido país:

en tus puertas ya

me siento torturado,

en tu boca ya me

siento masticado,

en tus ríos ya

me siento ahora

y siempre y nunca

ahogado.


JAVIER HERAUD

POESÍAS COMPLETAS Y HOMENAJE. Lima: Ediciones de La Rama Florida, 1964

Sinais


Desenho Maturino Galvão

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Feliz Ano Novo

Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.

Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.

Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.

Vai mijar noutro lugar, tô sem água.

Pereba saiu e foi mijar na escada.

Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.

Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?

Tô morrendo de fome, disse Pereba.

De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.

Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.

Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.

Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.

As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?

Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.

Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.

Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.

Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?

Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.

Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.

No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.

As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.

Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.

Ela tava nua, disse Pereba.

Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.

Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.

Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.

Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.

Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.

Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.

Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.

Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.

As ferramentas dele tão todas aqui.

Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.

Eu ri.

Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.

Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?

Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.

Fumamos. Esvaziamos uma pitu.

Posso ver o material?, disse Zequinha.

Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.

Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.

O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.

Já, eu disse, está lá em cima.

A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.

Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.

É antiga mas não falha, eu disse.

Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.

Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.

Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.

Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.

Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.

É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.

É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.

Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.

Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.

Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?

Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.

Cara importante faz o que quer, eu disse.

É verdade, disse Zequinha.

Ficamos calados, fumando.

Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.

O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?

Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.

Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.

O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.

Que casa? Você tem alguma em vista?

Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.

Coloquei a lata de goiabada numa saca ele feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.

Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.

Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.

É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!

Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.

Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.

Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.

Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.

Crianças?

Estão em Cabo Frio, com os tios.

Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.

Gonçalves?, disse Pereba.

É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.

Inocêncio, amarra os barbados.

Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.

Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.

Pereba desceu as escadas sozinho.

Cadê as mulheres?, eu disse.

Engrossaram e eu tive que botar respeito.

Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.

Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.

Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.

Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.

Podem também comer e beber à vontade, ele disse.

Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.

Como é seu nome?

Maurício, ele disse.

Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?

Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.

Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.

Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.

Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.

Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.

Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.

Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.

Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.

Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.

Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.

Eu não disse? Zequinha esfregou ó ombro dolorido. Esse canhão é foda.

Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.

Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.

E você... Inocêncio?

Acho que vou papar aquela moreninha.

A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.

Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.

Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.

Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.

Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.

Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.

Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?

Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.

Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.

Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.

Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.

Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo.


Rubem Fonseca

Texto extraído do livro Feliz Ano Novo, Editora Artenova – Rio de Janeiro, 1975.

(republicação)

Sinais


Desenho Maturino Galvão